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Novelas e TV-Zappeando

"Você se sente preso": 3 homens trans comentam o que é vivido por Ivan na novela

Publicado 30 Ago 2017 – 08:14 AM EDT | Atualizado 15 Mar 2018 – 02:50 PM EDT
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Transgênero, adjetivo feminino e masculino, substantivo feminino e masculino, definição: "Diz-se de ou pessoa cuja identidade de gênero é oposta àquela do nascimento".

Esta palavra - e todo o significado que ela carrega - ganhou mais visibilidade no Brasil pelas mãos de Gloria Perez, que escreve a história de Ivana, personagem de Carol Duarte para "A Força do Querer", novela recorde de audiência no horário nobre da Globo. Ela enfrenta a família, os amigos e as próprias dúvidas e anseios, antes de assumir a identidade masculina de Ivan, quando finalmente se sentirá à vontade no próprio corpo.

A autora fez uma série de estudos para abordar a transgeneridade da melhor forma possível. Executando o assunto de forma didática, levantando questionamentos na trama que fazem parte da vida de quem enfrenta a mesma situação, ela conseguiu chamar a atenção para pessoas como Ivana, que sofrem tanto preconceito na sociedade sem nem ter a chance de explicar o que sentem ao mudar de gênero.

Mas o que é, de fato, essa transição? Muito embora seja baseada na realidade - a produção teve a consultoria de Tarso Brant e João W. Nery, homens trans que possuem muita visibilidade na internet ao falar desse assunto -, a novela ainda é uma obra de ficção, que precisa seguir alguns protocolos para tratar de temas delicados. Isso faz com que nem todo mundo se identifique com Ivana entre a população trans, que reúne narrativas tão individuais, embora unidas pelo mesmo propósito.

A fim de entender melhor como é a realidade das pessoas que querem mudar de gênero, o VIX conversou com três homens trans, que enfrentaram situações semelhantes ao que é mostrado em “A Força do Querer”. E ainda que reconheçam a importância de tocar nesse assunto em rede nacional, nem todos concordam com a abordagem da novela em determinados momentos.

Desconforto com o corpo e busca por identidade

Assunto pouco debatido no Brasil, a transição de gênero ainda gera muitas dúvidas e não só em pessoas cisgênero - que se identificam com o gênero biológico que nascem -, mas também em pessoas trans, que demoram a perceber e a entender sua identidade. 

A falta de informação (e tolerância) da sociedade sobre o assunto é tão grande que faz com que as próprias pessoas trans tentem mascarar suas características, o que gera ainda mais dúvidas sobre a identidade, principalmente na infância.

É o que aconteceu com Keel Rodrigues, 27 anos. “Eu sempre soube que era diferente, desde quando era criança. Eu era infeliz, era uma criança infeliz, porque todo tempo eu ficava me podando, como se eu soubesse que o meu modo de pensar era errado”. Ele conta que passou a infância inteira assistindo à televisão, já que suas brincadeiras eram diferentes do que era considerado normal para uma menina, como bonecas e casinha.

Quem passou pela mesma situação foi João Henrique Machado, 25 anos. Ele conta que, quando criança, se identificava mais com as brincadeiras “de menino”, como carrinhos, bola e corrida. “No começo eu não entendia muito bem, mas eu nunca gostei de bonecas. Já nas brincadeiras de casinha, eu sempre era colocado como o ‘papai’ e eu não questionava, pois para mim estava tranquilo, era o que eu queria”.

Assim como Ivana, eles sempre perceberam que havia algo de errado com o próprio corpo, embora não entendessem exatamente o que estava acontecendo. Com a chegada da adolescência, as coisas finalmente foram ficando mais claras, mas o desconforto também foi aumentando.

“Desde o começo eu negava todos os padrões impostos pela sociedade. Já não ia à praia se não fosse de biquíni e camiseta, pois eu não gostava da forma como meu corpo se desenvolvia, então todas as praias que íamos eram um pesadelo para mim”, explica João.

“Com mais ou menos 14 anos, eu comecei a aceitar que aquilo era minha realidade, pois antes era uma guerra comigo mesmo. Comecei a mudar, bem devagarzinho, quando eu comecei a ficar com as primeiras meninas”, relata Keel, “Fui mudando o jeito de me vestir, fui começando a colocar isso dentro de casa. Eu sempre soube que eu era diferente, é uma coisa que nasceu comigo”.

"Eu sou trans": como lidar com a descoberta?

“No começo foi um pouco mais difícil, até porque eu não tinha conhecimento sobre ser ‘trans’. No início eu era considerado lésbica”, conta Emerson Leal, 23 anos. Os primeiros relacionamentos, com meninas, levantavam questionamentos entre os familiares, que demoraram a aceitar a orientação sexual deles - definição diferente do que é a identificação de gênero.

É possível ser um homem trans e ainda se sentir atraído por homens, assim como existem homens trans que se relacionam com mulheres. Em “A Força do Querer”, Ivana é apaixonada por Cláudio (Gabriel Stauffer), e seus sentimentos não mudaram com a transição de gênero. Por isso, ela se descobre um homem trans gay, termos explicados na trama pela psicóloga da personagem.

Antes de entender o que é a transgeneridade, a vida dessas pessoas foi marcada por um enorme sufoco, de não se reconhecer no corpo que possuem e de ter que se submeter a padrões em que não se encaixam. “Você se sente preso, é como viver em uma prisão de grades. Toda hora eu tinha que inventar um personagem pra mim: aquela menininha, que gosta de meninos, que gosta de rosa, cabelo solto, maquiagem… Eu sempre odiei esse tipo de coisa, mas eu tinha que viver nesse mundo”, explica Keel.

Assim como Ivana, muitos homens trans entram em contato com esse assunto por meio de amigos, que mostram o caminho para a mudança de gênero, possibilidade nunca antes cogitada até então.

“Através de buscas em sites e algumas páginas de redes sociais, fui associando o que eu encontrava com a minha vivência, e o modo com o qual eu me sentia. Quando li a definição do que é ser transexual, pude perceber que tudo se encaixava”, aponta Emerson.

Em “A Força do Querer”, Ivana conhece Tereza Brant, homem trans que a apresenta para esse universo. A partir de algumas conversas, ela começa a se identificar com o que ele passou, e cada vez mais tem a certeza de que quer realizar a transição de gênero. Emerson teve uma trajetória parecida, pois também foi apresentado a um homem trans. “Uma colega de trabalho me colocou em contato com um rapaz trans, e foi ele quem me deu bastante suporte para chegar até onde cheguei”.

Apoio da família: privilégio conquistado

Nem toda a população trans tem o apoio dos familiares na transição, muito pelo contrário. De acordo com um levantamento da organização Transgender Europe, de 2016, o Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo, e grande parte dessa repressão acontece dentro de casa. Sendo assim, ser acolhido pela família pode ser considerado um privilégio, mesmo que nem todos entendam o que leva as pessoas a querer mudar de gênero.

Em “A Força do Querer”, Joyce não aceita a vontade de Ivana, e sempre foi contra o jeito com o qual a filha gosta de se vestir. Quando ela começa o processo de hormonização, as coisas ficam ainda piores, já que a família inteira acredita que a jovem esteja usando drogas. “Para a minha mãe está sendo um momento delicado, porque para ela se adaptar e entender o meu eu, requer um pouco de tempo e paciência de ambas as partes”, explica Emerson.

“Eu não sei se minha mãe não entendia ou se não queria ver a realidade, mas ela falava que não entendia porque eu era tão diferente. Ela dizia que não aceitava aquilo, e foi bem difícil no início”, completa Keel.

Quem passou por uma situação diferente foi João, que cresceu em uma cidade do interior e teve que lidar com a repressão dos vizinhos. “Eu até tive apoio em casa, mas minha mãe sofreu e foi julgada junto comigo, como se ela tivesse me criado errado. A sociedade cobrou mais dela do que de mim”.

A necessidade das mudanças físicas

A transição de gênero é, geralmente, acompanhada por um processo hormonal, com acompanhamento médico. Embora não seja regra, quem não se identifica com o próprio corpo sente uma enorme necessidade de enxergar essas mudanças, adotando as características visuais do gênero oposto.

“Quando eu ainda não sabia o que era a transexualidade, eu não fiquei tão preocupado em me hormonizar, eu só me sentia incomodado quando me chamavam pelo pronome feminino, ou pelo nome biológico, por ter que menstruar e ter que usar os documentos nos locais públicos, passando por um constrangimento”, explica Emerson, “Mas a partir do momento em que eu estava ciente sobre o assunto trans, eu não via a hora de começar a tomar os hormônios, a ansiedade tomava conta”.      

Na trama, Ivana também sente essa vontade. Ela adota um corte de cabelo bem curtinho, e pelo uso de hormônios, surgirá com barba nos próximos capítulos. Mas como é possível mudar algo que sempre existiu?

“Não é que decidi mudar de gênero, a verdade é que eu me identifico e sempre me identifiquei com o gênero oposto do que foi me atribuído ao nascer”, completa Emerson, que realizou o processo de hormonização. “Fui encaminhado para uma endocrinologista. Depois de fazer alguns exames para ver se corria tudo bem com o meu organismo, consegui a tão esperada receita e no mesmo dia tomei a minha primeira dose, foi o dia mais feliz da minha vida”.

Apesar de frequente, o tratamento hormonal não é uma regra. Keel, por exemplo, usa roupas masculinas desde sempre e pede para ser chamado pelo pronome masculino, mas ainda não começou a tomar os hormônios. “Quero fazer com acompanhamento médico, se Deus quiser no ano que vem, mas é só isso que falta. Não quero fazer a cirurgia de mudança de sexo, só a de retirada dos seios, que é o que mais me incomoda”.

Como acontece a hormonização?

Antes de tudo, é preciso entender que o uso de hormônios na transição de gênero não é um processo fácil e requer uma avaliação de outros profissionais, como psicólogos e psiquiatras, antes do devido encaminhamento a um endocrinologista. De acordo com a Dra. Mariana Farage, membro titular da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia e formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), essa avaliação determina se é o caso de um paciente transgênero.

“Definido isso, se inicia um bloqueio hormonal – no homem, com administração de hormônios femininos e, na mulher, com hormônio masculino. Durante esse processo, são feitos vários exames para o acompanhamento de dosagem”, explica a especialista. Embora o procedimento possa variar de um organismo para outro, a transição costuma durar, em média, de alguns meses até um ano.

“Na mulher, é administrada a testosterona, hormônio responsável pelo desenvolvimento dos músculos, engrossamento da voz e crescimento de pelos. Já no homem, a testosterona é bloqueada e é administrado o estrogênio, hormônio que confere todas as características femininas das mulheres, como aumento dos seios e melhora da textura da pele”, pontua a doutora. No caso de Ivana, é com a testosterona que ela desenvolverá barba, além de outras características.

Administrar os hormônios sem o acompanhamento de um profissional pode ser muito perigoso. Segundo a Dra. Mariana, caso o paciente tome doses erradas, há o risco de doenças no coração e até infarto. E caso haja a vontade de fazer a cirurgia de mudança de sexo, é preciso começar com a terapia hormonal.

“A cirurgia acontece após todo o processo hormonal e depois de uma cuidadosa análise junto a uma equipe de diversos profissionais, como psicólogo e psiquiatra, endocrinologista, urologista e ginecologista”, conclui a profissional.

É preciso, no entanto, desmistificar a identidade de gênero, que pode não estar ligada ao órgão sexual.

“Homem trans é aquele ser que quer ter uma aparência física masculina, pêlos no corpo e rosto, voz grossa, não ser chamado pelos pronomes femininos e nem ser chamado pelo nome biológico. Quando eu entendi isso, pude ter toda a certeza de eu sou transgênero”, explica Emerson.

Representatividade em “A Força do Querer”

Gloria Perez foi bem cuidadosa ao introduzir o tema da transgeneridade. No início, a personagem Ivana parecia apenas não corresponder às expectativas da mãe, que queria que ela fosse extremamente feminina. Porém, com o passar da trama, ela foi entrando em conflitos com ela mesma, na descoberta da sexualidade, no desgosto que sentia com o próprio corpo até, enfim, entender que dá para mudar de gênero, o que sanaria todas as angústias que ela sentia.

“Eu acho muito importante falar sobre o assunto na novela, porque muitas pessoas não entendem e sempre querem nomear as coisas, então quando vão falar de mim falam ‘sapatão’, ‘lésbica’, de um modo bem grosso. Eu explico que sou trans, o que é trans, e dá pra falar ‘Ah, tem a novela’, é bom para usar de exemplo”, explica Keel, que enxerga a trajetória de Ivana como algo positivo.

Apesar de colocar cenas tão familiares para a população trans, alguns detalhes ainda merecem atenção. “Deveria ficar claro que o personagem Ivan era Ivan desde o começo e não o chamar de Ivana. As pessoas têm dificuldades em se referir a ele, eu sempre escuto ‘A personagem trans’, ou ‘A Ivana é trans’, sempre com o pronome feminino. Porque não já respeitar desde o início como o Ivan, mesmo que na trama ele fosse chamado pela família de Ivana? Me pareceria mais de acordo com a realidade”, pontuou João, que não se sente representado pela personagem.

“Acredito que, quando ele voltar hormonizado, dará uma falsa impressão que em pouco tempo é possível ter resultados assim, sendo que a gente sabe que isso varia. Isso pode fazer com que as pessoas apliquem os hormônios de forma incorreta, procurando um resultado mais rápido e podendo causar sérios riscos à saúde”, continua João.

A intenção de “A Força do Querer”, no entanto, tem gerado uma boa repercussão entre o público. Afinal, o alcance da novela é imenso, e finalmente as pessoas estão discutindo esse assunto. “A abordagem do tema é bastante importante para a sociedade como um todo, visando mostrar que podemos respeitar as diferenças e compreender que existem pessoas que não se identificam o sexo biológico”, opina Emerson. “A novela está, de fato, abrindo portas para que as pessoas entendam o que é a transgeneridade, visando ela como algo comum, de modo de viver, e não como doença”.

Ver as descobertas de Ivan na TV é emocionante e esclarecedor ao grande público, e apesar de alguns erros, há quem diga que a construção do personagem foi, sim, fiel à realidade. “Tirando alguns fatos ocorridos na novela, que são poucos, e espero que novas cenas possam mostrar a vivência das pessoas trans, me sinto representado e feliz por saber que estamos conseguindo conquistar um pouco de espaço e visão compreensiva do público”, conclui Emerson.

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