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Novelas e TV-Zappeando

Mesmo sendo novela de época, como "Novo Mundo" consegue mostrar temas tão atuais?

Publicado 25 Ago 2017 – 06:00 AM EDT | Atualizado 15 Mar 2018 – 02:52 PM EDT
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Aposta da Globo para um horário que apresenta uma trama mais leve para o público, " Novo Mundo" conseguiu conquistar os telespectadores com uma mistura de ficção, realidade e aventura romântica. Apesar de ter como cenário o início do século XIX e a independência do Brasil, a novela das seis ganhou os telespectadores por ter em sua fórmula um atrativo a mais, que vai além dos livros de História: o diálogo com os problemas atuais de nosso País.

Tratando de assuntos como corrupção, o chamado "jeitinho brasileiro", a demarcação das terras indígenas, entre outros, o folhetim escrito por Thereza Falcão e Alessandro Marson conseguiu encontrar pontos de conexão com temas contemporâneos e fazer um balanceamento com os personagens históricos e ficcionais que protagonizam a novela.

"Nós sempre batemos muito nessa tecla, de que não há sentido em fazer uma história de época que não dialogue com o período no qual ela é exibida. Qualquer novela, independente de quando a ação se desenvolva, precisa ter pontos de conexão e interesse com os dias atuais, senão não teria por que ser produzida", afirmaram os autores Thereza Falcão e Alessandro Marson em entrevista ao VIX. "Se pensarmos nos temas pertinentes à sociedade brasileira, nos temas sobre os quais as pessoas estão falando, veremos que a política ocupa grande parte desse repertório", completaram.

A premissa de fazer com que problemas atuais sejam mostrados para o público através das novelas - o que faz com que estes ganhem mais visibilidade – teve início com a criação deste gênero, na década de 1950. Apesar de ter passado por várias mudanças desde então, uma característica fez com que a teledramaturgia se aperfeiçoasse durante todos os anos em que ficou ao ar: a capacidade de conversar com diversos tipos de público, dando aberturas para que eles tivessem um lugar reservado na cultura de massa, no qual podem absorver temas diversos.

Neste aspecto, a criação da faixa das 18h, principalmente na Globo, transformou o modo de fazer a teledramaturgia brasileira. Se durante um longo período de tempo as produções ficcionais foram inspiradas em obras literárias, com o passar dos anos houve um desenvolvimento de um estilo de narrar as histórias do Brasil – sejam elas baseadas na História ou não.

Como surgiram as novelas das seis?

O gênero das teledramaturgias foi criado na década de 1950 e desde então passou por muitas transformações, sempre se adaptando ao público de cada época. No início, as novelas buscavam legitimidade com a adaptação de clássicos da literatura, como os romances "Helena", de Machado de Assis, e "Senhora", de José de Alencar.

Mas foi durante o início do período da Ditadura Militar que a Rede Globo criou o horário das seis, tudo com o intuito de ter uma faixa de horário especialmente para essas adaptações literárias. São exemplos produções como "A Moreninha", "Helena" e "O Noviço", ambas exibidas em 1975.

"Em 1975, durante a Ditadura Militar, abriu-se um plano nacional que previa a utilização da televisão para disseminar a cultura. E para compor as obras da TV, os militares queriam que fossem utilizados trabalhos que falassem da literatura nacional. Por muito tempo a faixa das seis horas foi um horário destinado a histórias adaptadas da literatura, por conta da necessidade de passar os ‘valores nacionais’", afirmou Maria Cristina Mungioli, professora e doutora pela Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP.

Mas se no começo praticamente todas as produções ficcionais eram inspiradas em obras literárias, com o passar do tempo houve o desenvolvimento de um estilo próprio de narrar as histórias do Brasil com as telenovelas. É então que o gênero começa a ser transformado e a literatura se torna uma fonte de inspiração para os cenários e personagens dos folhetins.

"A partir dos anos 2000, algumas novelas do horário passam a não ser produções de época ou da literatura. Há também as novelas que são de época, mas não são adaptações literárias, originais do horário das seis, como 'Chocolate com Pimenta' (2003), 'Eterna Magia' (2007) e 'Escrito nas Estrelas' (2010)", relembra Maria Cristina Mungioli.

A atualidade dos temas de "Novo Mundo"

Apesar de ser inspirada na história de formação do Brasil, "Novo Mundo" acaba fugindo um pouco da História por conta de uma necessidade de cativar o público com sua narrativa. As histórias de personagens como Dom Pedro, Leopoldina e José Bonifácio, por exemplo, são adaptadas para que os telespectadores se sintam atraídos pelo enredo – incluindo toques de romances, dramas e ação que podem ou não ser mostrados nos livros.

Além disso, o que chama atenção é a incorporação de elementos de temas atuais para relacionar ainda mais a TV com a vida real.

"É uma necessidade para a ficção, seja da TV ou do cinema, se manter atualizada em relação a alguns temas. Trazer esses assuntos para a atualidade, deixá-los mais leves. Isso traz certa identificação para as pessoas com o problema que está ali, caso contrário elas não veem um atrativo. Tudo também depende do modo como essa leitura é abordada e se as pessoas enxergam determinados assuntos com ‘outros olhos’ a partir do que é mostrado para elas", pontuou a especialista.

Para não ficarmos presos ao lado histórico, outros personagens são inseridos na narrativa, sem nenhum compromisso com a História de fato. São nomes como Anna (Isabelle Drummond), Joaquim (Chay Suede) e Thomas (Gabriel Braga Nunes), além do núcleo cômico, Elvira (Ingrid Guimarães), Licurgo (Guilherme Piva) e Germana (Vivianne Pasmanter).

Com suas vidas ligadas diretamente aos principais temas da atração, como a corrupção, a questão indígena e o chamado "jeitinho brasileiro", essas figuras acabam sendo a principal ferramenta dos autores para construir a narrativa de "Novo Mundo".

"Anna e Joaquim são um exemplo de casal que permite tudo, porque não estão na história de verdade. Suas narrativas podem ser construídas e alteradas porque não têm nenhuma relação com a História. Essa é uma técnica para fazer a trama andar, para que não fique muito 'presa' aos personagens históricos. Anna é a escritora boazinha, enquanto Joaquim é o amigo de todos. Isso cria uma liberdade para o roteiro", comenta Maria Cristina.

Os personagens foram construídos para serem os protagonistas da trama que, de algum modo, acabam salvando a vida de todos, como comentaram os autores do folhetim.

"Nossa premissa é o heroísmo, falamos sobre pessoas capazes de atos grandiosos, de fazer sacrifícios em nome do bem maior. Nossos heróis são movidos por este sentimento. Desejávamos mostrar alguns exemplos de conduta melhor", disseram Thereza e Alessandro.

Política e corrupção 

Na trama de "Novo Mundo", a política e a corrupção são dois dos temas que mais ganham destaque na atração. Como os próprios autores da novela afirmaram em entrevista ao VIX, estes são assuntos que ocupam grande parte do repertório dos brasileiros nos dias atuais e, quando mostrados em uma produção de TV, garantem mais atenção do público – mesmo se tratados, de certa maneira, com comicidade.

Na trama da novela das seis, acompanhamos Dom Pedro (Caio Castro) e José Bonifácio (Felipe Camargo) lutando pela independência do Brasil depois que o rei de Portugal, Dom João (Leo Jaime), volta para seu país de origem com todo o dinheiro. Além disso, Leopoldina (Letícia Colin) se mostra como uma verdadeira líder política ao tomar decisões importantes para o Brasil.

Nesse cenário, acompanhamos tramas paralelas em que algum personagem está sempre tentando "se dar bem" às custas de outro – seja em questão de dinheiro ou de cargos políticos. Estas são práticas que começaram a ocorrer com a colonização e, desde então, permanecem enraizadas na cultura brasileira.

"A corrupção tem raíz na colonização, com a vinda dos portugueses, e permanece por conta do hábito de tratar a coisa pública como privada. Esse é um hábito adquirido do absolutismo português que ainda não se desvinculou do Brasil, porque todos que assumem o governo tratam o público como privado", afirmou o professor de História Felipe Magane em entrevista ao VIX.

"Esse conceito de corrupção 'nasceu' quando os portugueses chegaram ao Brasil e permanece na história através de um grupo que concentra esse poder. Os coronéis do nordeste, por exemplo, vêm de hábitos coloniais do Brasil", completou.

"Por o Brasil ser uma colônia, os portugueses usavam certas estratégias para resolver as situações sem muita burocracia. Isso fez com que um 'jeitinho' fosse usado para burlar as regras. Se fizermos uma comparação entre as colonizações espanholas e portuguesas, percebemos que os espanhóis eram muito burocráticos, enquanto os portugueses optaram pelo lado mais prático", disse Leandro Alonso, professor de História, em entrevista ao VIX.

Jeitinho brasileiro 

O chamado "jeitinho brasileiro" é retratado na novela através de dois personagens em especial: Licurgo e Germana, os donos da Taberna dos Porcos. A dupla impressiona pelas cenas cômicas em que falam tudo o que pensam e fazem tudo por dinheiro, sempre imaginando uma maneira de tirar vantagem em cima dos outros.

"O jeitinho brasileiro está diretamente ligado à concepção de corrupção. De que se dá um jeitinho para tudo e de que tudo pode acontecer no Brasil. O autor Sérgio Buarque de Holanda explica isso com o termo homem cordial, mostrando um homem que faz tudo em interesse próprio, e não pensando no coletivo", explica Felipe Magane.

Apesar de seus planos quase nunca darem certo –  justamente sendo essa uma das maneiras que os autores encontraram de mostrar que nem tudo por ser resolvido com esse "jeitinho" –, as situações protagonizadas pelo casal servem para alertar para esse hábito que está presente em nosso dia a dia.

Demarcação das terras indígenas 

Em "Novo Mundo", a questão indígena também ganhou destaque. O problema ligado à demarcação da terra é abordado a partir do momento em que a Família Real resolve tomar posse das áreas que pertencem desses povos. É quando Joaquim entra em cena para defender os índios e fazer um acordo com Dom Pedro, pedindo que ele devolva as terras.

"Quando os portugueses chegaram ao Brasil, capitalizaram as terras e 'empurraram' os índios para o interior em áreas isoladas. Isso se potencializou nos séculos XVIII e XIX, e ainda mais nos próximos séculos por conta da complexa economia dos latifundiários", reiterou Leandro Alonso. "A pior coisa que os portugueses fazem com os índios é o processo de aculturação e de sobreposição cultural. Mais do que tomar um território, eles tomaram o modo como os índios entendem a sua cultura", completou o professor.

Até hoje, a questão da demarcação das terras pertencentes aos índios são um entrave para a política brasileira, já que claramente esbarram em interesses de latifundiários e ruralistas – que têm grande influência sobre o País.

"Com o crescimento da consciência do que significa ser índio no Brasil e com os períodos democráticos, o governo tem a perspectiva de resguardar a cultura indígena no país. Mas ao mesmo tempo em que eles querem fazer isso, esbarram nos interesses do latifúndio, da agricultura e do lucro dos ruralistas", afirmou Felipe Magane.

Feminismo 

O forte poder das mulheres também ganha destaque na novela das seis. Apesar de se tratar de uma novela de época, são as personagens femininas que chamam atenção pela influência que têm em pontos cruciais da narrativa – confirmando que, já no ano de 1800, o papel da mulher ia muito além da dona de casa.

Leopoldina mostra a verdade que ficou relatada apenas nos livros de História, e que muitas vezes não é contada na escola. Foi a austríaca a verdadeira responsável pela independência do Brasil e por lutas políticas que eram encabeçadas por Dom Pedro. Enquanto isso, Anna luta para sair de um casamento e criar a filha, Vitória, em um ambiente que não seja caótico, ao mesmo tempo em que tenta sucesso como escritora.

Ainda que façam parte do núcleo cômico, Germana e Elvira também são importantes nesse aspecto. As duas lutam por direitos iguais entre homens e mulheres – seja em se tratando do direito de se candidatar à eleição de cargos políticos ou de ter parte da guarda do filho.

Reinventando o modo de fazer uma novela das seis de época, "Novo Mundo" conseguiu atrair o público e contar parte da História do Brasil de um modo diferente, com toques de comicidade. A produção tem conexão com os dias atuais e dialoga com os telespectadores, trazendo para as cenas do Brasil de 1800 problemas atuais que precisam – e muito – serem discutidos.

"Novo Mundo" e História do Brasil

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