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violência contra a mulher-Mulher

Cena de Gael e Clara expõe crime perverso e doloroso para a própria vítima reconhecer

Publicado 26 Out 2017 – 01:44 PM EDT | Atualizado 15 Mar 2018 – 01:18 PM EDT
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Parecia apenas mais uma cena de casamento dos sonhos na televisão: Clara, personagem de Bianca Bin na novela “O Outro Lado do Paraíso”, da TV Globo, havia acabado de trocar os votos matrimoniais com Gael, interpretado por Sérgio Guizé, quando os dois seguiram juntos para uma linda casa, no meio do nada, toda preparada para a noite de núpcias dos recém-casados.

Entre carícias, Clara sobe animada na cama e conta que pretende vestir uma camisola para o amado – que, a essa altura, já se mostrava visivelmente alterado entre um gole e outro no gargalo de uma garrafa de champanhe. O que se segue ao episódio é terrível: Gael arranca a lingerie da mão da esposa, a agarra e começa a tirar à força o lindo vestido de noiva, machucando Clara e deixando-a apavorada. 

 Ao ser jogada na cama, a moça fala em vão: “Eu estou com medo”. O companheiro de Clara se transforma no agressor que a manda calar a boca e força uma relação sexual totalmente indesejada. A chocante cena do estupro acontecendo, intercala com imagens da moça se afogando em um rio, uma metáfora para a violência que a personagem vivia e que corrompeu, ali, seu sonho de se casar com um “príncipe gentil”.

O que o autor Walcyr Carrasco retratou na trama passa longe de ser apenas ficção e é mais comum do que parece. Trata-se do estupro marital, tipo de violência sexual contra a mulher que ocorre dentro de um relacionamento, sendo geralmente praticada pelo marido, namorado ou parceiro da vítima. 

Estupro marital: violência invisibilizada

Reconhecido como crime no Código Penal brasileiro desde 2009, este tipo de abuso representa a realidade de uma grande parcela de mulheres que são agredidas sexualmente no Brasil - segundo o balanço de 2016, da Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência (Ligue 180), 65,91% dos casos de violência contra a mulher foram cometidos por pessoas com quem a vítima tem ou teve algum vínculo afetivo.

Apesar de frequentes, muitos episódios de abuso ainda permanecem fora das estatísticas por causa da dificuldade que as vítimas têm de reconhecer a violência sofrida e denunciar seus agressores. 

“O estupro marital é uma violência ainda muito invisibilizada, porque existem diversos obstáculos para que haja a notificação desse abuso, especialmente por ele acontecer em uma relação conjugal, entre um homem e uma mulher”, aponta a promotora de Justiça Silvia Chakian, do GEVID (Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica).

De acordo com ela, vítimas acabam silenciando sobre o abuso também pelo medo ou vergonha de se exporem publicamente, já que elas temem serem desacreditadas. “Nesse tipo de violência, nem sempre há testemunhas e existe a dificuldade de demonstração de não consentimento de uma relação sexual entre o casal”, explica.

Segundo Silvia, muitas mulheres ainda não conseguem identificar que foram vítimas de uma violência sexual em seu relacionamento – e esse reconhecimento muitas vezes só acontece através de ações de conscientização realizadas em grupos de apoio à mulher. 

“Ainda hoje, existe aquela concepção de subordinação feminina em nossa sociedade, de que a mulher deve servir sexualmente seu marido ou companheiro. Porém, nenhum ato sexual pode ser praticado sem o consentimento dela e ela tem o direito de rejeitar quando ela quiser”, ressalta a promotora.

Escalada da violência no relacionamento

Na novela, antes da cena do abuso em si, o personagem Gael já havia dado uma amostra de sua personalidade violenta ao acabar com a festa de casamento aos berros e mandar os convidados embora, tudo por conta de uma situação de ciúmes. Em geral, os agressores da vida real vão justamente dando sinais ao longo da construção do relacionamento de que podem vir a se tornar violentos.

“São sinais que, muitas vezes, as mulheres acreditam que são fruto de amor, de um ciúme romantizado e que, na verdade, demonstram uma relação de poder e de controle abusivo. Existe uma escalada da violência: começa com esses primeiros atos, depois vem a violência psicológica e, por fim, a violência física”, afirma Silvia.

Agressor não é sempre violento

Se por um lado os agressores vão demonstrando aos poucos sua tendência violenta, por outro, eles conseguem persuadir suas vítimas a aceitarem esses episódios de abuso como algo passageiro, assim como foi mostrado em “O Outro Lado do Paraíso”. 

Sem conseguir dormir, a personagem Clara passa a noite em claro, chorando, até ser procurada pelo marido na manhã seguinte. “Eu fui bruto, não fui? Me desculpa. Eu te amo muito, eu te desejava tanto, que não tive calma de esperar”, explica-se Gael. Depois que ela mostra a marca roxa que ele deixou em seu braço, o rapaz pede perdão, promete que vai ser o “príncipe” que ela tanto sonhou e logo muda o assunto para a lua de mel do casal.

Para Silvia, é nesse tipo de situação que mora o verdadeiro perigo. “O abusador não age sempre daquela forma violenta, ele também se comporta bem, é carinhoso, romântico. É a grande armadilha em que as mulheres caem e acabam perdoando esses atos de violência, por acreditar que não vão se repetir. É uma lógica perversa”, diz. 

Precisamos falar sobre violência doméstica

Em todos os casos, os efeitos da violência sexual doméstica são devastadores para a vítima e vão desde impactos físicos a traumas emocionais – alguns, inclusive, sentidos a longo prazo. Tanto é que não são raros os casos de mulheres que contraem doenças sexualmente transmissíveis, encaram uma gravidez indesejada, se envolvem com drogas ou desenvolvem transtornos psicológicos como depressão, distúrbios alimentares e síndrome do pânico.

Por isso, a promotora Silvia Chakian acredita que a abordagem do estupro marital em uma novela no horário nobre de uma emissora nacional pode contribuir para a conscientização sobre a violência doméstica e os relacionamentos abusivos

A retratação do tema na trama de Walcyr Carrasco, aliás, faz parte de uma ação da TV Globo, em parceria com a ONU Mulheres, para incentivar o debate e a discussão acerca da violência doméstica. A emissora trará o tema para a vida real em uma campanha online de conscientização da plataforma "REP: Repercutindo Ideias", com vídeos de mulheres reais que compartilham suas histórias e aumentam a luta pela defesa de direitos.

“É preciso romper o silêncio. Esse ciclo da violência em relacionamentos não se quebra sozinho. A mulher não dá conta desse problema sozinha e precisa procurar ajuda sempre. Ela precisa saber que ela tem direito ao exercício de sua sexualidade plena e livre, nunca limitada pela violência”, finaliza a promotora.

Casos de violência contra a mulher no Brasil

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