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Médico pioneiro em estudo do HIV no Brasil alerta jovens e fala do futuro da doença

Publicado 10 Out 2018 – 09:31 AM EDT | Atualizado 10 Out 2018 – 09:34 AM EDT
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O HIV sempre foi um dos vírus mais temidos do mundo. Houve uma época em que contrai-lo tinha o mesmo peso de uma sentença de morte e incluía uma desgastante batalha física contra ele. Com o avançar da ciência, o tratamento evoluiu e ter HIV passou a ser considerada por muitos quase uma doença crônica, silenciosa desde que bem cuidada. Mas o que parece algo apenas positivo, tem um efeito que passa despercebido por muitos e precisa ser lembrado, principalmente pelos jovens.

Para essa reportagem especial, o infectologista Celso Granato, um dos pioneiros do assunto no Brasil, falou ao VIX traçando um breve histórico da Aids e mostrando por que ainda precisamos nos preocupar com o HIV hoje.

Primeiros anos do HIV

No início da década de 80, ninguém entendia muito bem o superpoder de um vírus que havia surgido em um grupo de homens jovens e aparentemente saudáveis, em Los Angeles, nos Estados Unidos. O vírus atacava diretamente o sistema imunológico dos pacientes e causava uma séria infecção pulmonar.

Apesar de tão devastadora, a doença ainda era desconhecida: só ganhou o nome de Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (Aids) em 1982, enquanto médicos aceleravam as pesquisas para identificar a origem do vírus e dimensionar seu real impacto.

O infectologista Celso Granato foi um dos pioneiros no estudo do HIV no Brasil e fazia, na ocasião, especialização em Hepatites na Université Claude Bernard, em Lyon, na França.

Curioso, ele foi convidado a acompanhar os primeiros passos da equipe de pesquisadores do Instituto Pasteur, referência em todo o mundo na área de pesquisa científica relacionada à saúde, que conseguiria isolar o vírus do HIV em 1983.

O mito da Imunodeficiência Relacionada ao Gay

No Brasil e no mundo, as pessoas estavam morrendo, e ninguém sabia o porquê.

Pior: no primeiro momento, não se pesquisou a possível contaminação por transfusão de sangue, compartilhamento de seringas, sexo sem preservativo e da mãe soropositiva para a criança. Desconhecimento total.

Tateando às cegas, uma publicação de 1981 do CDC (centro para prevenção e controle de doenças dos Estados Unidos) foi o primeiro registro de casos do que se tornaria a pandemia da Aids, tão violenta que dois homens morreram antes mesmo de o estudo ser divulgado.

É a partir deste registro que mais casos apareceram, todos entre homens gays. O fato reforçava mitos sobre a forma de transmissão do vírus HIV – até então, também desconhecido pelo meio científico – e os estudos se concentraram, por muito tempo, no público gay. Estudos iniciais chamavam a condição de Imunodeficiência Relacionada ao Gay (GRID, na sigla em inglês).

Causas até então misteriosas

“Para se ter uma ideia, um trabalho publicado na revista científica inglesa The Lancet, uma das melhores do mundo, dizia que a causa da Aids era uma substância que se colocava no nebulizador das saunas. Por que eles questionaram: ‘por que só acontece com pessoas que vão em sauna?’”, destaca o especialista.

“O que acontecia, entretanto, é que se colocava derivado de nitrito no nebulizador de saunas gays para provocar preapismo (ereção do pênis durante horas). Aplicou-se a substância em um ratinho de laboratório e ele ficou imunodeprimido e pegou infecção oportunista, como acontece com o aidético", conta.

"Eles somaram dois mais dois e concluíram: esse pessoal vai à sauna, usa isso aqui, injetamos a substância no ratinho e é como se ele tivesse Aids, é lógico que é isso”.

Só que aí começou a aparecer gente com o vírus que não frequentava sauna gay. Como os bancos de sangue não faziam teste para detecção do HIV, pessoas que faziam transfusão de sangue foram infectadas. Grávidas transmitiam HIV para o feto.

Formas de contaminação e definição do que é HIV

Ao mesmo tempo, sem conhecimento da doença, muita gente achava que o vírus se transmitia pelo beijo, ao dividir talheres, no aperto de mão ou até respirando o mesmo ar que um soropositivo.

A ciência, então, deu as respostas e a Aids passou a ser conhecida como o que hoje sabemos que é de fato: um retrovírus (HIV) que é transmitido por sangue, leite materno, sêmen e secreções vaginais. O risco de contaminação por sexo anal, prática comum entre homossexuais, é maior. É a segunda doença mais infecciosa do mundo, apenas atrás da tuberculose.

De acordo com a OMS, já matou 35 milhões de pessoas ao redor do mundo desde o início da epidemia e, apesar da evolução no tratamento, ainda não tem cura nem vacina.

Vírus cada vez mais desafiador

Com o tempo, os pesquisadores pioneiros do Instituto Pasteur Jean-Claude Chermann, Françoise Barré-Sinoussi e Luc Montagnier e sua equipe passaram a perceber que o vírus HIV não era fácil, não só por sua alta taxa de mutação, mas também pela forma devastadora que ele chegou a populações de várias partes do mundo.

“Ele é um vírus diferente, não é à toa que fez 30 anos e ainda não temos uma vacina”, avalia o infectologista Celso Granato que, na época, foi um dos primeiros a tocar pesquisas de testagem da doença no País, no Instituto Adolfo Lutz, em São Paulo.

Era debruçada nas pesquisas para entender o vírus que trabalhava a equipe do Instituto Pasteur (que você vê na foto abaixo), a partir de 1985, a pioneira na investigação científica da Aids.

“Quando o HIV apareceu, a virologia era uma ciência relativamente nova e isso forçou os pesquisadores a entrarem em áreas de biologia molecular que eram novidade.

Por isso, durante um bom tempo, foram as pesquisas para HIV que trouxeram muitas descobertas que foram aplicadas em outras doenças, de tecnologia e de tratamento”.

“Se não usássemos esses recursos, não conseguiríamos elucidar uma doença que tinha um impacto muito grande. Por isso, a primeira coisa que a gente tinha que fazer era montar um teste para fazer nas pessoas e conseguir o diagnóstico”, relembra.

Os testes para HIV foram da técnica de imunoflorescência, “que praticamente não usamos mais, porque é uma técnica muito manual”, explica o médico, para o ensaio imunoenzimático, o ELISA. Este foi o primeiro teste de sangue liberado para comercialização, nos Estados Unidos, em 1985.

Em 1987, foi aprovado o teste Western blot, que identifica os anticorpos para o vírus com ainda mais precisão.

Ter HIV na década de 80

Mas, se o diagnóstico do vírus da Aids era mais fácil, falar que era soropositivo ainda era barra pesada, como se dizia nos próprios anos 80.

A magreza excessiva e a fraqueza denunciavam a condição do aidético, que além de lidar com o fato de ainda não haver medicamentos para aplacar a doença, ainda tinha que enfrentar o preconceito de comunidade, que rotulava a Aids como uma “doença gay”.

O fardo era pesado inclusive para pessoas famosas, que se tornaram grandes ícones na luta pelo combate a Aids. O vocalista do Queen Freddie Mercury (foto acima), por exemplo, só confirmou que era HIV positivo um dia antes de morrer, em 1991.

O cantor e compositor Cazuza também chegou a negar a doença em entrevistas, mas deu a notícia em entrevista ao jornalista Zeca Camargo, em 1989, um ano antes de sua morte.

A comoção em torno destas personalidades marcou uma geração, a primeira que sentiu, de fato, medo de pegar Aids e foi alertada para o uso de preservativos para evitar o HIV.

Formas de prevenção e um novo panorama

Foi no final da década de 80 que entidades médicas e autoridades se aliaram para lançar campanhas para o uso de preservativos.

Fato é que o método de prevenção sempre dependeu de uma atitude dos parceiros sexuais de colocar camisinha, o que ainda enfrenta diversas barreiras culturais e pessoais.

“Não foi tão simples. Havia muito tabu ao tentar convencer um casal supostamente estável a usar preservativo. Por isso, foi uma questão social delicada. Mexia na intimidade do casal”, comenta o infectologista.

Neste sentindo, as mudanças sociais são um pouco mais lentas, tanto entre os mais jovens, que não viveram o risco de morte da doença, quanto entre os que viram a medicina avançar na busca por tratamentos mais aceitos e, no caso do Brasil, oferecidos de forma gratuita (no SUS).

Em busca da cura da Aids

Depois de encontrar formas de diagnóstico e prevenção, o meio científico passou a se dedicar à busca pela cura dos pacientes com Aids.

O grande primeiro trunfo foi o AZT, liberado para comercialização em 1987, após várias experimentações com os remédios que já existiam nas prateleiras (o próprio AZT era usado para tratamento de câncer).

“Percebemos que uma droga só não era suficiente. Só que as drogas do começo atuavam apenas sobre uma enzima do vírus, que é a transcriptase reversa. E todas as enzimas fazem parte, quimicamente, do mesmo grupo. Mudamos a abordagem: em vez de tentar bloquear só uma enzima, quantas outras existem? Foi identificada a protease [usada pelo HIV para formar novas partículas virais]".

Assim, foram colocadas as primeiras drogas de hipertensão para ver se serviam para HIV. "Dessa forma, começaram a ser feitos os inibidores de proteases”, detalha Celso Granato. A Aids, então, deixou de ser fatal para virar uma doença crônica.

“Porém, esse início mostrou para gente que existe efeito colateral. Porque grande parte desses inibidores fazia diminuir a gordura do corpo, apareciam uns sulcos no rosto. Você entrava no hospital, via uma pessoa e dizia: ‘Esse cara tem Aids’. Aí, isso começou a atrapalhar também, porque as pessoas não queriam ser socialmente discriminadas por causa disso”.

Tratamento gratuito

Por aqui, as coisas avançaram rápido, com o Governo se organizando para dar suporte às pessoas com HIV frente a tanta gente levantando bandeira pelo fim do preconceito com a doença: o Brasil foi um dos primeiros países a fornecer tratamento gratuito para pessoas que viviam com Aids, a partir de 1996.

Aids é completamente diferente hoje

Com novas drogas e o acesso facilitado ao medicamento, pelo menos no Brasil, uma pessoa com HIV pode viver sem que a doença se manifeste.

Estudo científico feito com voluntários na Austrália, na Tailândia e no Rio de Janeiro aponta que quem tem carga viral indetectável tem riscos quase zerados de transmitir HIV – mas, há discordância da comunidade médica quanto aos impactos desta novidade, o que pode deixar de lado o “sexo seguro” entre casais discordantes (sendo um soropositivo e o outro, não).

Condições melhores de vida X efeitos colaterais

Apesar de as condições de vida de uma pessoa com HIV serem melhores, alerta o infectologista, os efeitos colaterais do remédio e da própria doença podem comprometer a saúde do paciente.

Além de causar aumento no colesterol e enjoos, o tratamento antirretroviral precisa ser feito com rigor, tomando as pílulas religiosamente, e sem interferência de determinados tipos de alimentos ou outros remédios.

Controle da infecção x tratamento

Uma pessoa soropositiva precisa, ainda, ter acompanhamento médico para avaliar as consequências do vírus no corpo.

“Hoje, conseguimos controlar muito a infecção, mas alguns aspectos ainda não controlamos bem. Na verdade, o problema todo é o estrago que o vírus fez. Ele faz um estrago que ainda não conseguimos reparar”, lamenta o médico.

“Mesmo que ele esteja em gânglio, quietinho, a pessoa não pode parar de tratar, senão ele volta todo. O que acontece é um processo de estimulação crônica do sistema imune, por causa da morte dos glóbulos brancos, coisa que o organismo não sabe controlar. E isso é deletério para o corpo”.

Quem é infectado pelo HIV? Médico faz alerta a jovens

Segundo dados da Unaids, programa de combate à Aids da ONU, de 2016, no Brasil, 830 mil pessoas viviam com o HIV e 14 mil mortes foram registradas relacionadas à Aids. A epidemia é considerada estabilizada.

Fato é que, ao longo destes 30 anos, a doença pouco mudou de perfil: o boletim epidemiológico do Ministério da Saúde 2017 aponta maior concentração dos casos de Aids entre homens e mulheres de 20 a 34 anos, com base nos casos registrados de 2007 a 2018.

Dentro desses grupos, entretanto, a transmissão do HIV é heterogênea, segundo o levantamento do Ministério da Saúde de 2016: nos últimos dez anos, há uma tendência de queda de casos exceto entre as mulheres de 15 a 19, 55 a 59 e 60 anos.

Entre os homens, não há muita diferença: foi registrado aumento da taxa entre os de 15 a 19 anos, 20 a 24 anos e 60 anos e mais, este último grupo, possivelmente, relacionado à prolongada vida sexual proporcionada por medicamentos como Viagra.

No boletim de 2017, o quadro mantém-se em elevação para as faixas etárias entre 15 e 19 e acima dos 60 anos, para ambos os sexos.

“A gente vê no dia a dia que mudou um pouco a faixa etária de infecção por HIV. Com o Viagra e até com ruptura de famílias [casamentos], é comum ver os homens que há 20, 30 anos não tinham condições de se contaminar, agora têm.

É a questão da liberdade sexual, do Viagra, e uma questão cultural dessa população não querer usar camisinha de jeito nenhum”, avalia o infectologista.

Já para os jovens pesam o fato de não ter vivido o clima de temor na descoberta da Aids e, por outro lado, por terem mais facilidades no tratamento da doença.

“As pessoas querem acreditar que esse tratamento é mais definitivo do que a gente sabe que é. Depois, há uma falta de exemplos. É bom, porque isso significa que as pessoas não estão morrendo, mas eles passam a não ter medo mais disso. O jovem se sente invencível, ‘comigo não vai acontecer’”.

“Essa relação comportamental, principalmente relacionada ao sexo, é muito difícil de mudar. Se não conseguiu mudar isso com uma doença como a Aids, que mata, fico pensando o que conseguiria. É muito arraigado. Mas, continuo otimista”, pondera o especialista.

HIV no mundo

O HIV ainda atinge 36,7 milhões de pessoas no mundo e a África representa dois terços dos novos infectados, em 2016. Destes, 19,5 milhões receberam tratamento antirretroviral no mesmo ano, segundo dados da OMS.

O que esperar do futuro

Não se fala em cura definitiva da Aids, pelo fato de o vírus ser altamente mutável. Mas, existem boas notícias tanto no tratamento, quanto na prevenção da doença.

A Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) previne o contágio por meio de um comprimido que está disponível no SUS para alguns grupos de risco. A estratégia é fortemente recomendada pela OMS e tem eficácia de 80% a 90%.

Já a Profilaxia Pós-exposição sexual (Pep) é uma espécie de pílula do dia seguinte antiaids, que não deve ser usada repetidamente, e se torna um importante aliado para vítimas de estupro e violência sexual.

Casos de possíveis curas também trazem um pouco de esperança: um britânico passou por tratamento inovador que tornou o vírus indetectável em seu corpo e uma garotinha de 9 anos, que nasceu com HIV positivo, também apresentou remissão douradora do vírus após interrupção de tratamento precoce com antirretrovirais.

Cientistas também estão atrás de uma vacina que tenha, pelo menos, 80% de eficácia. Por enquanto, uma vacina produzida na Tailândia (chamada RV 144) há quase oito anos chegou a apresentar 31% de eficácia – mas, a comunidade científica apontou os resultados do teste como insignificantes pelo fato de a RV144 ter sido oferecida a 16.402 tailandeses em áreas com altos índices de HIV, mas não especificamente a grupos de risco da doença.

Por enquanto, focar na prevenção parece ser a melhor saída.

O que você precisa saber sobre HIV

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