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Como os vídeos do youtuber Zoio retratam o perigo da banalização do estupro?

Publicado 31 Jul 2018 – 06:58 PM EDT | Atualizado 31 Jul 2018 – 07:18 PM EDT
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Um vídeo gravado em 2016 com a presença do youtuber Everson Henrique de Oliveira, conhecido como Everson Zoio, chocou as redes sociais e virou caso de polícia, porque nele o rapaz relata o que seria o estupro da sua namorada na época.

No vídeo, Everson descreve para um grupo de três amigos como tentou fazer sexo com a namorada mesmo após ela ter se negado a ter relações sexuais com ele e enquanto ela dormia. Na narrativa, permeada por termos obscenos, o rapaz é ouvido atentamente pelos colegas, que se divertem e gargalham com cada parte relatada pelo amigo.

O vídeo, divulgado no canal do YouTube de um dos amigos presentes nas imagens, foi deletado na última sexta-feira (27), mas acabou viralizando em outras redes sociais, como Twitter e Facebook. No último sábado (28), Everson publicou um novo vídeo em seu canal desmentindo a história contada por ele.

De acordo com a lei brasileira, uma pessoa só pode ser denunciada por estupro pela própria vítima para só então responder na Justiça - o que não aconteceu com Everson.

Fora a gravidade dos fatos narrados no vídeo, o caso traz à tona a dura realidade sobre a banalização do estupro e da violência contra a mulher no Brasil. Como um vídeo com este teor está disponível desde 2016 e só foi descoberto agora? O que significa um assunto tão grave ser tratado como "piada" no papo com os amigos? Como uma pessoa que é tão influente para jovens e adolescentes (Everton tem mais de 9,8 milhões de inscritos em seu canal do YouTube) trata o assunto com tanta banalidade?

Caso de polícia

Embora diga em um trecho que não ia forçar a parceira a transar, “porque não é um estuprador”, Everson descreve com precisão uma cena de uma tentativa de fazer sexo com a menina sem o consentimento dela.

Após a repercussão nas redes sociais e repercussão na imprensa de todo o País, o mineiro decidiu publicar um novo vídeo de esclarecimento sobre o caso. Durante os dez minutos de gravação, Everson diz que fez "uma piada de muito mau gosto" e que a história foi invenção sua para se exibir aos amigos.

Inventada ou não, a história de Everson Zoio será investigada pela Polícia Civil de Minas Gerais, por conta de suspeita de possível caso de estupro. Em nota oficial, o órgão informa que, "tão logo tomou conhecimento, por meio da imprensa, do vídeo feito pelo youtuber Everson Zoio, relatando um suposto episódio envolvendo sua ex-namorada, amplamente divulgado nas redes sociais, acionou a Delegacia Especializada em Investigação de Crimes Cibernéticos, que já está adotando todas as providências de polícia judiciária, para a completa elucidação do fato noticiado".

Cultura do estupro

Tanto o vídeo original quanto o vídeo de esclarecimento mostram elementos do que se denomina cultura do estupro. De acordo com Ana Paula de Oliveira Lewin, defensora pública do Estado de São Paulo e colaboradora do NUDEM (Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher), o que fica evidente no vídeo é a banalização do corpo da mulher e banalização do estupro.

“É como se qualquer prática de ato libidinoso fosse permitida, como se a piada fosse permitida só por que ele é homem. Os dois vídeos refletem o que a gente chama de cultura de estupro”, afirma Ana Paula.

A especialista aponta como algumas atitudes encaradas com naturalidade são perigosas para uma sociedade que combate a violência contra a mulher. A principal delas é se valer do papel de homem para justificar as ações.

“Ele mesmo diz que não é estuprador, que homem brinca e aumenta a história, como se toda essa brincadeira em torno de um crime fosse algo que é possível de ser feito, algo comum, algo socialmente aceitável. Hoje, infelizmente, ainda vemos que a sociedade aceita esse tipo de comportamento. Alguns atos, ainda que criminosos, sempre vão ser justificáveis. Ele tenta se justificar se baseando nisso, dizendo que fez isso porque é homem, reiterando e repetindo um comportamento machista que permeia toda a nossa sociedade. E é isso que é tão chocante. Como é que um crime tão grave como o estupro é tratado e visto de uma forma tão banal?”, afirma.

Além disso, Ana Paula também chama atenção para a posição de Everson enquanto um influenciador de crianças e adolescentes na internet, o que pode alimentar a cultura do estupro. De acordo com ela, a postura do youtuber pode ser repetida por seu público, em um ciclo que reforça ainda mais esse tipo de atitude.

“As pessoas podem continuar repetindo esse comportamento, achando tudo isso natural, porque se ele diz que é natural, essas pessoas influenciadas por ele também vão achar. Então, vamos continuar insistindo nesse modelo machista em que o homem pode tudo, homem decide o que é brincadeira e o que não é, o corpo da mulher é apenas um instrumento e ele vai decidir se aquilo é estupro ou não”, acrescenta.

Estupro de vulnerável

De acordo com Ana Paula, se o relato feito pelo youtuber configurar um fato verdadeiro, ele se enquadra em um caso de estupro ainda mais grave, por ter sido praticado com uma pessoa que não podia oferecer resistência (já que a garota estaria dormindo e inconsciente do que estava acontecendo). Desta forma, estaria descrito um episódio de estupro de vulnerável.

Desde 2009, o estupro é legalmente considerado um crime hediondo, segundo o Código Penal brasileiro, com pena que prevê reclusão de 6 (seis) a 10 (dez) anos. Já o crime de estupro de vulnerável prevê pena de reclusão de 8 a 15 anos, fora os agravantes.

A especialista explica que esse tipo de crime é muito pouco denunciado, porque é considerado como algo vergonhoso e constrangedor pela vítima. Sem contar que ele envolve um dilema difícil que as mulheres enfrentam na hora de denunciar, de comprovar que aquilo de fato aconteceu.

Para se ter uma ideia, apenas em 2016, foram registrados nas delegacias brasileiras 49.497 casos de estupro, de acordo com informações divulgadas no 11º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Este dado aponta que mais de 135 mulheres foram estupradas por dia em todo o país naquele ano.

Conteúdo inapropriado na web?

Casos como o de Everson podem ser denunciados na Justiça pelos internautas? Sobre essa questão, Marcelo Crespo, advogado especialista em Direito Digital e sócio do Peck Advogados, explica que os usuários só poderiam denunciar criminalmente o youtuber se ele tivesse dito algo explícito, fazendo apologia ou incitação direta ao crime. Como explicado acima, de acordo com a lei brasileira, para um caso de estupro ser investigado, a denúncia deve ser feita pela própria vítima.

“Do ponto de vista judicial, os internautas não têm o que fazer. O que aconteceu ali foi uma declaração de que ele teria praticado o crime de estupro, que depende de representação da vítima para ser julgado criminalmente”, esclarece Marcelo.

O YouTube não quis comentar o caso de Everson, mas explicou que a plataforma possui políticas de moderação para conteúdos impróprios, que pode ser feito por qualquer usuário. "Não comentamos casos específicos. Todos os conteúdos no YouTube precisam estar de acordo com nossas Diretrizes da Comunidade. Em qualquer momento uma pessoa pode sinalizar um conteúdo que considere impróprio, ou então que julgue violar alguma de nossas políticas, usando nossas ferramentas de denúncia", diz um comunicado oficial divulgado pela plataforma ao VIX.

Everson Zoio foi procurado pela reportagem através de seu canal oficial, mas não respondeu à solicitação até o fechamento da matéria.

Dados sobre estupro

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