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Não é sobre varrer o chão: é sobre respeito! Todas as cenas absurdas do MasterChef

Publicado 7 Dez 2016 – 05:30 PM EST | Atualizado 26 Mar 2019 – 06:14 PM EDT
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Na noite do dia 13 de dezembro foi anunciado o campeão da 1ª edição do programa "MasterChef Profissionais", da TV Band, no Brasil. Dayse Paparoto foi a grande vencedora. A vitória da chefe é muito significativa não só na cozinha, mas também na sociedade, já que ela foi subjulgada e desacreditada desde o começo por seus colegas. Na final,  Paola Carosella fez um discurso que leva todos a pensar: quando conseguiremos enxergar que somos todos seres humanos com características diferentes, mas igualmente capazes e merecedores de respeitos?

É possível notar facilmente os impactos nocivos do machismo em qualquer canto da sociedade. Mas, no programa "MasterChef Profissionais", a situação ficou escancarada em muito mais vezes do que imaginávamos.

E ele não escolheu personagens específicos. Quase todas as mulheres do programa sofreram ataques emitidos por vários dos competidores homens. Sobrou até para uma das juradas – e única mulher – Paola Carosella e para a apresentadora Ana Paula Padrão.

Machismo no MasterChef 

Já no primeiro episódio da edição profissional do programa foi possível experimentar (e o gosto não foi bom!) o tempero que o programa ia ter em alguns momentos, especialmente no quesito respeito às mulheres.

De uma sequência de três provas, a última foi a preparação de um jantar em equipe formada pelos integrantes com o pior desempenho nos preparos anteriores. Os cozinheiros que tinham se saído melhor estavam no mezanino da cozinha e, vez ou outra, davam algum conselho para aqueles que estavam trabalhando.

O primeiro episódio de discriminação começou neste momento. Izadora Dantas, uma das competidoras, estava atrasada em suas tarefas. Ivo Lopes, um dos cozinheiros que estava no mezanino, ao opinar sobre o trabalho que a cozinheira estava desempenhando, chamou outro colega para falar e não se dirigiu a ela. A atitude claramente incomodou Izadora, que era completamente capaz de ouvir e optar por seguir ou não o conselho dado por ele.

Em seguida, os jurados decidiram que os dois cozinheiros que tiveram o melhor desempenho nas provas anteriores deveriam descer para ajudar os colegas. Ivo, assim que chegou à cozinha, se aproximou de Izadora e a retirou do centro da atividade, colocando-a apenas como ajudante. “Você vai fazer o seguinte: vai pegar o que eu pedir para você, ok?”, disse. A chefe ficou absurdamente desconfortável com a situação, que precisou ser mediada por Paola (assista aos trechos entre os minutos 12 e 14 do vídeo abaixo).

Não bastasse o desrespeito de Ivo, João Lima também mostrou já no começo que a cozinha profissional é um ambiente muito hostil para as mulheres. Paola Carosella, que nesta última prova estava como chefe da cozinha, após analisar o trabalho do competidor, orientou que ele deixasse de fazer determinado prato. João, que tinha clara dificuldade de ouvir seguir os comandos dela, ignorou a recomendação e o fez mesmo assim.

Paola ficou absolutamente desconfortável com a situação e, além de expressões faciais, perguntou se ele, enquanto chefe, gostaria que seus subordinados o desobedecessem em sua cozinha. João, nos comentários feitos longe dos jurados, responde ao programa que não, porque na cozinha dele ele é quem manda. (veja trecho entre os minutos 20 e 22 do vídeo).

Na sequência do programa Ivo, junto com a chefe Priscylla Luswarghi, foi protagonista de mais uma situação desagradável.

Trabalhando em equipe, o cozinheiro centralizou as funções para si e quando a competidora reclamou da montagem de uma sobremesa, ela recebeu uma resposta bastante grosseira. “Fica tranquila, o capitão sou eu, deixa comigo. Priscylla, eu já entendi! Pronto!”, respondeu Ivo.

Depois de sua eliminação, em outra fase do programa, a chefe comentou que a cozinha profissional é, de fato, um espaço muito difícil para as mulheres, pois elas muitas vezes são subestimadas.

João não chegou até a final do programa, mas não deixou de ser destaque por suas declarações. Quando foi eliminado, o chefe mais uma vez não poupou desrespeitos nem à apresentadora do programa, Ana Paula Padrão.

Ao gravar a despedida, momento em que o eliminado se direciona até o vestiário, retira seus pertences e comenta sobre a experiência do programa, João foi rude com a apresentadora, dizendo que era ela era leiga no assunto. “Eu sou leiga, mas sou ponta final da sua profissão. Se você não me agradar, não agrada ninguém”, rebateu com firmeza Ana Paula.

E parece que a lista não tem fim. Izabela Dolabela, outra participante do programa, depois de ser eliminada, fez um grande resumo do mundo da alta gastronomia: “Para muitos, mulher é só cozinheira, homem é chefe”, comentou.

Fádia Cheiato, a penúltima mulher a ser eliminada da competição, também comentou que o ambiente é muito difícil, especialmente porque existem machistas na cozinha.

Dayse Paparoto no MasterChef

Os episódios até agora relembrados já seriam o suficiente para exemplificar o quanto as mulheres precisam se superar no mercado de trabalho. Mas, infelizmente, eles não são os únicos.

Se antes eles eram velados ou as situações aconteciam de forma mais espaçada, de maneira que pudessem passar despercebidas por algumas pessoas, quando uma mulher começou a chegar perto da final e causar insegurança nos competidores masculinos, a situação ficou evidente, como mostra um compilado de momentos feitos por uma internauta.

Os mais emblemáticos e que ganharam maior repercussão aconteceram com Dayse Paparoto.

O primeiro deles aconteceu quando, em uma prova em equipe com Ivo e Dario Costa, a chefe avisou que eles deveriam fazer, além de outros cortes, um pernil inteiro. Nenhum dos dois prestou atenção na observação da chefe até serem cobrados pelos jurados. “Por ironia do destino a Dayse tinha entendido sobre o pernil e a gente não de muito ouvidos para ela”, disse Dario.

Na mesma prova, quando a competidora tentou pegar alguma responsabilidade para si, Ivo e Dario mostraram que tudo devia ficar centralizado neles. Os dois estavam responsáveis por todos os processos da prova, do preparo da carne aos legumes e montagem dos pratos. Ao reclamar dessa condição, a chefe ouviu de Ivo que deveria "varrer o chão".

Não fosse o suficiente, no mesmo episódio, Marcelo Verde, outro competidor que claramente temia enfrentar Dayse na semifinal, escolheu uma combinação difícil para que ela preparasse. O prato, surpreendentemente, foi elogiado pelos chefes e a competidora foi salva e seguiu para a próxima etapa da competição. “Quero derrubar a Dayse de qualquer jeito, hoje. Para ficar mais fácil de eu ir para a semifinal”, disse Marcelo antes do fim da prova.

Ao fim, questionados sobre quem menos temiam, todos os homens indicaram Dayse. Ivo e Dario foram eliminados depois de terem dito que ela não é uma competidora à altura deles. Dayse seguiu na final com Marcelo.

“Na cabeça de um homem, ir para a final com um homem é ok, mas ir para a final com uma mulher... A possibilidade de perder para uma mulher acho que pega para eles, fica meio vergonhosa, para eles, né?”, comentou a competidora sobre a atitude de Marcelo de tentar, a qualquer custo, chegar na final com Dario.

Dayse é reconhecida por ser uma chefe com muitas habilidades e por seus incríveis desempenhos, que sempre mostram adaptações criativas e certeiras no preparo dos pratos. Isto, no entanto, não parece ser o bastante para que ela seja respeitada como uma profissional competente.

Na cozinha de casa pode, na profissional não

As atitudes dos participantes do programa exemplificam exatamente como funciona não só o mercado da alta gastronomia, mas todos os outros ambientes de trabalho: as mulheres precisam provar um milhão de vezes mais o quanto são boas no que fazem.

Hamilton Bavutti, doutor em Ciência de Alimentos pela Unicamp, gastrônomo e autor do blog Receita Passo a Passo sintetiza, em um texto publicado no blog “Escreva Lola, Escreva”, um grande dilema que mostra o quanto ainda estamos longe de alcançar a equidade de gênero.

“O modelo de família que me foi ensinado na minha infância, e que eu me recordo desde sempre, é a família cujo pai trabalha fora e ganha o sustento do lar, enquanto a mãe, dona de casa, cuida dos afazeres domésticos. Essa é a ideia sedimentada, machista, de que mulheres são feitas para o tanque e para o fogão, para prover o marido e os filhos com comida quente e roupa lavada e passada. Então me veio a curiosidade de saber: se existe essa visão deturpada da distribuição do trabalho, por que a maioria dos chefs de cozinha são homens, uma tarefa predominantemente feminina na visão patriarcal?”, questiona.

Mulher é cozinheira, homem é chefe de cozinha

É o sistema patriarcal (sistema social baseado no controle dos homens sobre as mulheres) que destina às mulheres apenas as tarefas domésticas que não são remuneradas, não são consideradas “trabalho” e, portanto, têm “menos valor” na concepção do sistema.

Quando essas mulheres vão para a rua – neste caso para as grandes cozinhas – desempenhar as mesmas tarefas, só que desta vez com reconhecimento e remuneração, elas só não são bem recebidas, como são subestimadas e desacreditadas, escancarando a verdade presente na fala de uma das competidoras que disse ser a mulher que cozinha considerada somente uma cozinheira e o homem um grande chefe.

Mulheres são chefes de cozinha?

A hostilidade do ambiente e as dificuldades de a mulher ser reconhecida nesse espaço resulta em números assustadores. Nos restaurantes ranqueados com as estrelas Michelin, menos de 8% são chefiados por mulheres. E o abismo não é exclusividade de grandes cozinhas. Análises globais mostram que apenas 10% dos estabelecimentos possuem mulheres chefes – e elas ainda ganham 17% a menos para desempenhar as mesmas funções.

O gastrônomo, ainda no texto, acrescenta: “Obviamente, esta visão sexista está longe de ser uma realidade somente das cozinhas do mundo. Áreas como aviação, segurança pública, cargos de alto nível empresariais, construção civil, robótica, entre outras tantas áreas, ainda são redutos machistas onde a presença da mulher é pequena e controversa”.

O problema é estrutural e não individual

Ivo, após sua saída, comentou sua participação no reality e suas atitudes controversas em uma entrevista para o site de notícias Uol e negou ter sido machista. “Foi extremamente sem ofensa. Aproveitar para fazer alguma coisa pedimos normalmente para qualquer pessoa na cozinha. Eu continuo lavando louça, limpando chão, dando faxina. As pessoas precisam parar de criticar um pouco e entender que naquele calor da prova a gente acaba falando algumas coisas que eles levam para outro lado, como arrogante”, comentou sobre o episódio da vassoura.

Essa falta de percepção sobre a existência de preconceitos em suas atitudes evidenciam que o machismo não tem como causa a atitude individual. Ou seja, ele não existe única e exclusivamente por culpa do indivíduo que se comporta dessa maneira, mas é estrutural e tem origem na infância, quando meninas e meninas começam a ser moldados e a sociedade a ser ditada.

No entanto, embora seja essencial repensar a origem do problema e, portanto, a maneira como a sociedade se constrói, tão importante e emergencial quanto é instigar debates e reflexões para que os homens reconheçam seus privilégios e não perpetuem essas reações e atitudes. É como se um homem não tivesse completa culpa em agir pela primeira vez assim, mas tivesse total responsabilidade de entender o problema dessas ações e se esforçar para não repeti-las.

MasterChef Brasil

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