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Se é estupro ou não, o que mais importa na cena da manteiga é: isso é violência!

Publicado 7 Dez 2016 – 03:57 PM EST | Atualizado 20 Mar 2018 – 12:57 PM EDT
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Nos últimos dias, um artigo publicado no site americano da revista Elle retomou uma entrevista do cineasta Bernardo Bertolucci, em que ele assumiu que uma das cenas de sexo do filme “Último Tango em Paris” não foi consensual. O assunto foi bastante divulgado e artistas e cineastas de Hollywood chegaram a se manifestar.

A cena é de 1972, ano em que o famigerado filme “Último Tango em Paris” foi gravado e lançado. Nele, a personagem Jeannie, interpretada por Maria Schneider, se relaciona com Paul, personagem vivido por Marlon Brando. Na época, a atriz tinha 19 anos e estava no começo de sua carreira. Brando tinha 48 e já era consagrado.

Cena da manteiga

Em um dos trechos mais emblemáticos do filme, Paul usa um pedaço de manteiga como lubrificante para manter relação sexual anal sem o consentimento da personagem. A cena do estupro ficou conhecida mundialmente.

O que aconteceu? 

Em 2013, em uma entrevista para o programa holandês “College Tour”, Bertolucci falou que Maria, que faleceu em 2011, ficou com ódio dele depois do filme. Isto porque, como conta, ela não estava ciente sobre os detalhes da cena. “A sequência conhecida como 'a manteiga' foi uma ideia que eu tive com Marlon na manhã antes da gravação, mas eu fui horrível com Maria, porque eu não disse a ela o que ia acontecer. Porque eu queria a reação dela como menina, não como atriz. Queria que ela reagisse à humilhação, que sentisse os gritos de 'não, não' e acho que ela me odiou. E odiou Marlon, porque não contamos a ela do detalhe do uso da manteiga como lubrificante. Eu me sinto muito culpado por isso”, disse.

Embora tenha dito que até hoje se sente culpado, Bertolucci explicou que não se arrepende porque “para fazer filmes, às vezes, para obter algo, acho que temos que ser completamente frios. Eu não queria que Maria atuasse sua humilhação, sua raiva. Eu queria que ela sentisse [humilhação e raiva]. Por isso, ela me odiou a vida inteira”, completou.

Em outras ocasiões a atriz já tinha comentado sobre as atitudes do cineasta, mas as entrevistas não tiveram a mesma repercussão. Pouco antes de morrer, em uma entrevista ao tabloide britânico Daily Mail, em 2007, Maria contou que a cena da manteiga não estava no script. “Aquela cena não estava no roteiro original. A verdade é que foi Marlon quem teve a ideia. Ele só me falou sobre isso na véspera de filmar a cena e eu fiquei com muita raiva. Eu deveria ter chamado meu agente ou fazer meu advogado vir para o set, porque você não pode forçar alguém a fazer algo que não está no script, mas, na época, eu não sabia disso. Marlon disse para mim: ‘Maria, não se preocupe, é apenas um filme,’ mas, durante a cena, embora o que Marlon estava fazendo não fosse real, eu estava chorando lágrimas de verdade. Eu me senti humilhada e, para ser honesta, um pouco estuprada, tanto por Marlon quanto por Bertolucci. Após a cena, Marlon nem veio me consolar ou pedir desculpas. Felizmente, foi apenas um take”, explicou.

O filme, na época, teve impacto mundial e chegou a ter sua exibição vetada em alguns países devido ao alto teor erótico. Maria, como contou em entrevista, se deparou com a forma depreciativa como o público da época enxergou a cena. “Ele [Bertolucci] era gordo, suado e muito manipulador, tanto de mim quanto de Marlon, e fazia certas coisas para obter uma reação minha. Eu me senti muito triste porque fui tratada como um símbolo sexual. Eu queria ser reconhecida como uma atriz e todo o escândalo e repercussão do filme me deixou um pouco louca e eu tive um colapso”, contou.

Repercussão

Após a repercussão das entrevistas surgiram grandes questionamentos: até que ponto um diretor pode planejar uma cena sem comunicar o ator? Qual é o limite? Por que isso aconteceu com a atriz? Embora diga respeito a indústria cinematográfica e a um tipo de violência sexual, as respostas se aproximam muito das situações vividas por nós, mulheres, cotidianamente em diversos setores.

A discussão também acabou se reduzindo ao fato de existir ou não penetração na hora do ato, pois nem o cineasta e nem a atriz entraram nesses detalhes nas respectivas entrevistas, mas para aprofundar o debate, é preciso entender melhor o que é a violência contra a mulher.

Por que a cena foi violenta?

A violência contra a mulher é um dos instrumentos de manutenção do patriarcado. Quem faz a afirmação é Tica Moreno, ativista militante da Marcha Mundial de Mulheres, que explica que o medo gerado pela possibilidade da violência, seja ela sexual, física ou subjetiva, coloca as mulheres em posições de submissas. “Para todas nós, mesmo aquelas que nunca passaram por uma situação específica, ela provoca medo, provoca algum sentimento. A existência da violência contra a mulher faz com que a gente sempre esteja atenta, em alguns momentos até com medo, e isso nós leva a um lugar de inferioridade e passível de controle”, explica.

É por isso que, no caso de Maria Schneider, diretor e ator optaram por não contar para a atriz os detalhes da gravação porque tinham completa consciência de que a ação de usar manteiga como lubricante para uma cena de estupro causaria medo naquela mulher. É exatamente por isso que a cena é condenável. “Temos que considerar que o diretor teve intenção ao não contar todos os detalhes. Ao ter essa intenção, ele entende exatamente o que uma violência significa para as mulheres. O que ele descreve é exatamente a mostra de como os homens sabem o que a violência significa e causa nas mulheres e desmistifica a ideia de que eles fazem isso pelo instinto. Não é verdade. Eles fazem isso com uma intenção bem clara, satisfazer sua vontade de ter o controle, humilhar, desqualificar”, complementa a ativista.

Foi estupro?

“O que significa o estupro na vida de uma mulher? Só ela vai saber e não é a lei que determina isso”, diz Tica, reforçando a essencial ideia de que a sociedade precisa ouvir e reconhecer as experiências das mulheres. “Ela já tinha dito que se sentiu estuprada e isso importa. Temos que aceitar exatamente o que foi a fala dela e considerar que a violência tem a intenção de exercer poder e humilhar”, completa.

Mais violências e abusos...

Além da violência sexual, o contexto ainda envolve outros abusos pelos quais mulheres passam todos em dias, em todos os lugares do mundo.

Desigualdade no mercado de trabalho 

A atriz, além de ser mulher, na época da gravação ainda era jovem e estava no começo da carreira. Ou seja, estava envolta por uma série de inseguranças. E no mercado de trabalho claramente há uma hierarquia entre homens e mulheres que intensifica a diferença geracional.

“Claramente mulheres e homens não estão em situação de igualdade. Se estivessem, isso não aconteceria. Não dá para imaginar que eles teriam a mesma atitude se fosse um homem”, comenta a ativista. Isto porque, como explica, a maneira como as pessoas enxergam os homens e as mulheres no mercado de trabalho é completamente diferente e isto implica em uma série de fatores que vão desde o respeito empregado nas relações até as questões mais evidentes, como salários e promoções.

A diferença começa em casa, quando homens e mulheres não dividem e se responsabilizam igualmente pelas tarefas domésticas mesmo quando os dois trabalham fora. E se intensifica dentro das empresas. Tanto é que, no Brasil, apenas 5% das mulheres são chefes e nós ainda ganhamos 23% a menos para trabalhar mais horas exercendo a mesmíssima função que um homem, além de ainda ter que enfrentar a divisão do tipos de trabalho, aqueles “para homens” e outros “para mulheres”. A desigualdade para as mulheres negras é ainda mais abismal.

Na indústria cinematográfica não é diferente. “Último Tango em Paris” é de 1972. Mas, ainda assim, 43 anos depois, em 2015, Patricia Arquette e Jennifer Lawrence usaram premiações internacionais para denunciar as diferenças salariais.

Objetificação da mulher

A forma como a mulher é tratada no mercado de trabalho, especialmente em algumas áreas, como na televisão e na indústria cinematográfica, ainda escancara a objetificação do corpo feminino. “As atrizes podem ter muito talento, mas não é nesse lugar que elas são colocadas. É só observar os testes que mostram o número de mulheres em cada filme, a quantidade de falas que elas têm e a sua importância para história”, exemplifica Tica, mostrando que na imensa maioria das vezes as personagens femininas estão ali como acessórios, e não como agente do enredo.

Além de reduzir a atuação da mulher ao seu corpo e a sua capacidade de seduzir e prender a atenção dos homens, a forma como são representadas ainda naturaliza a violência. “Existem filmes que naquela época eram considerados eróticos e que hoje fazem parte da massa de filmes comuns e comerciais. É cada vez mais comum ver cenas de muita violência e sexo em filmes, novelas e seriados. E o que isso marca no imaginário das mulheres? Que a violência é natural. Isso impacta muito na vida e na subjetividade, tanto de quem assisti como da atriz”, comenta a ativista.

Estupro na justiça

De acordo com a advogada Raquel Preto, líder coordenadora do Comitê de Combate à Violência contra a Mulher do GMdB (Grupo Mulheres do Brasil) fosse este um caso confirmado como estupro e sendo no Brasil, tanto ator como cineasta poderiam ser julgados. “O estupro é a realização de atos sexuais sem o consentimento da vítima. O que poderia haver em um caso assim é a cumplicidade dos dois para o cometimento do crime. Um pode ser responsável como agente direto e o outro como colaborador para a prática do crime”, explica.

Em casos onde o crime é planejado com antecedência, ou seja, é qualificado, a advogada explica que há agravamento de pena.

Outros processos

Além da acusação de um possível estupro, a atriz ainda poderia denunciar o cineasta não só pela cena, mas pela maneira como, de acordo com seu relato na entrevista, foi tratada por ele. “Ela poderia processá-lo civilmente por extrapolar alguns direitos. Pedir danos morais por ter gravado algo que não tinha sido combinado. Um único caso pode possibilitar duas, três ou mais consequências diferentes, em áreas diferentes [civil e penal, no caso]”, explicou.

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