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"Estamos afastando a mulher da Justiça", diz promotora sobre atendimento a vítimas

Publicado 15 Set 2016 – 05:11 PM EDT | Atualizado 14 Mar 2018 – 09:30 AM EDT
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Recentemente, dois casos de abusos sexual contra adolescentes – no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro - evidenciaram problemas no acolhimento de mulheres vítimas de violência sexual pelo Sistema Judiciário. Eles podem, além de afetar a dimensão das ocorrências, ainda contribuir para a perpetuação desses crimes.

Como as mulheres são acolhidas e ouvidas quando decidem fazer uma denúncia? Por que todos os dados existentes em relação a  violência doméstica e estupro, por exemplo, são subnotificados? As mulheres, hoje, se sentem seguras para denunciar um crime desta origem?

O que os dois casos revelam é uma grave questão: o julgamento da conduta moral-sexual pelas quais as duas adolescentes foram submetidas. No caso do Rio de Janeiro, o delegado questionou se a vítima de estupro coletivo tinha o costume de fazer sexo grupal. Ele foi afastado da investigação. Já no Rio Grande do Sul, o promotor humilhou a adolescente vítima do próprio pai durante a audiência.

“Quando a gente fala de violência sexual contra adolescentes, falamos principalmente de mulheres. Os meninos geralmente só são vítimas na infância e, nessa idade, o atendimento é totalmente diferente”, coloca Ana Rita Souza Prata, coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública de São Paulo.

É por isso que, nestes casos, é possível traçar um paralelo com a forma como as mulheres são atendidas quando decidem denunciar um crime sexual. Além de o crime ser semelhante, a forma como uma adolescente e uma mulher adulta é acolhida também é. “Adolescente ou adulta, a sua moral é sempre colocada em xeque e a sua verdade é contestada a depender da forma como ela se porta ou se coloca naquele momento, se é digna ou não de confiança”, comenta a defensora.

E ainda mais grave é que este julgamento moral-sexual impacta não só no acolhimento da vítima como também no julgamento do caso. “Existe um estudo que analisou diversas decisões do tribunal relativas a crime de estupro. As pesquisadoras perceberam que todas as decisões levavam em consideração a conduta da mulher ou para considerar que era ela digna por ser de família e recatada ou o contrário, que seu depoimento não merecia confiança, porque supostamente seu comportamento sexual era considerado fora do padrão estabelecido. Isso não é achismo, a pesquisa deixa claro”, conta a advogada.

Como resultado, além de reforçar a ideia equivocada de que o comportamento de uma mulher interfere no seu merecimento ou não de respeito, este tipo de conduta ainda afasta as mulheres do Sistema Judiciário porque mostra que onde elas deveriam ser protegidas, na verdade, podem ser julgadas e descreditadas.

Por que as mulheres não denunciam a violência sexual e doméstica?

O Brasil tem, em média, 47 mil casos de estupro registrados por ano. Os números, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, no entanto, são subnotificados em 90%. Estima-se, portanto, que o real seja a média de 470 mil, resultando em um estupro a cada minuto.

Para Ana Rita, é exatamente por muitas vezes ser responsabilizada pelo crime do qual foi vítima que as mulheres deixam de procurar delegacias e efetivar as denúncias. “O que se percebe é que uma vez acionando o sistema de justiça, a vítima passa a ser objeto dele e ninguém mais se questiona o que ela está sentindo ou o motivo de ter mudado sua versão, exatamente como aconteceu com a adolescente do Rio Grande do Sul, que só foi vista como um objeto de prova, trazendo prejuízo para o objetivo daquele processo que era condenar o autor dos fatos. Então, por que a violência sexual é um crime com subnotificação? Por que é isso o que acontece com quem denuncia”, explicita Ana Rita.

“Infelizmente é como se a mulher precisasse provar que não era merecedora daquela violência em vez do homem provar que não cometeu o crime. Fica parecendo que, a depender das características do caso, de alguma forma o crime seja justificável”, acrescenta a promotora de justiça Gabriela Mansur, coordenadora do Núcleo de Combate à Violência Doméstica do Ministério Público de São Paulo.

De acordo com a promotora, a grave consequência deste atendimento que gera na mulher receio e medo de procurar auxílio na justiça é o alto índice de feminicídio.

O Brasil ocupa a quinta posição no ranking dos países que mais têm homicídios femininos – são 13 casos por dia. “Na imensa maioria desses casos, o agressor é conhecido e antes houve estupro, ainda antes houve violência física, psicológica, moral. Se não mudarmos o comportamento da justiça, vamos continuar afastando essas mulheres e vamos cada vez mais perder vítimas”, alerta a promotora.

Como deveria ser o atendimento de vítimas de violência sexual e doméstica

Sensibilização dos membros de todas as esferas e órgãos que atendem às vítimas, grupos de estudo e trabalho, campanhas de conscientização e investimentos das próprias instituições (delegacias, defensorias, tribunais de justiça, hospitais, Ministério Público) em seus profissionais estão entre as medidas que, para a promotora, são capazes de mudar o olhar para essa questão.

Um acolhimento respeitoso, sem questionamentos morais e de conduta ou descredito e que respeite a autonomia da mulher, para Ana Rita, é uma das saídas para incentivar mulheres a procurarem ajuda e, consequentemente, diminuir a incidência das violências. “É preciso ter consideração com aquilo que a pessoa está sentindo, entender qual é o objetivo dela naquele momento da denúncia, se é um pedido de socorro, se é o desejo de responsabilizar criminalmente o acusado ou apenas o direito a fazer um aborto. E qualquer um deles deve ser respeitado”, reforça.

No entanto, embora as mudanças estruturais sejam essenciais, é impossível dissociar o comportamento dos agentes dos valores culturais da sociedade. “Nossa sociedade ainda é marcada pelo machismo, pelo patriarcado, pelo racismo e pela cultura da violência contra a mulher e isso se reflete em qualquer lugar”, pontua Gabriela. A mudança, portanto, precisa ser ampla e atingir todas as esferas sociais.

Mas, mesmo reconhecendo os problemas existentes, a promotora reforça ser importante não desacreditar em órgãos postos para proteger o cidadão. “A adolescente foi tratada de forma indigna e hostil pelo promotor no Sul, que teria que zelar em todos os casos pela dignidade humana e impedir abusos de qualquer tipo. Mas, esse tipo de atitude não reflete a ação do Ministério Público. Eu mudei minha forma de atuação desde que ingressei, aprendi a criar empatia e me colocar no lugar da vítima. A maioria dos profissionais é extremamente comprometida. Estamos do lado da sociedade”, reforça Gabriela.

Violência contra a mulher

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