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Monteiro Lobato: por que sua obra é vista como racista e o que diz quem defende

Publicado 3 Abr 2017 – 03:42 PM EDT | Atualizado 20 Mar 2018 – 12:57 PM EDT
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Um dos mais famosos escritores brasileiros, Monteiro Lobato está no centro de uma polêmica provocada por interpretações da obra Sítio do Pica-Pau Amarelo, seu legado mais conhecido (principalmente entre o público infantil). 

Em 2010, a imprensa brasileira destacou trechos da obra em que o escritor usou expressões racistas, quase sempre em falas da teimosa e desafiadora boneca de pano Emília e das crianças Narizinho e Pedrinho. Também foram revelados manuscritos pessoais em que Lobato comenta sobre a supremacia branca e as complicações sociais causadas pela miscigenação no Brasil.

No livro “Caçadas de Pedrinho” (1933), termos como “macaca de carvão” e “carne preta” são usados pela personagem e pelo próprio autor para falar sobre Tia Nastácia, a sempre dócil negra que cuida de todos sem se revoltar. 

Este comportamento, aliás, é um reforço do estereótipo da “Mammy”, difundido nos Estados Unidos. A Mammy é a mulher negra que, invariavelmente, é uma boa cozinheira, atenciosa aos cuidados de família, formada por brancos, como no caso do Sítio de Pica-Pau Amarelo. Além das qualificações, seu tipo físico também é estereotipado: gorda, ela tem seios grandes e usa lenço nos cabelos.

As publicações destacam outra característica relevante, desta vez, apresentada em correspondências pessoais do escritor: a de que ele mantinha contato com integrantes da Sociedade Eugênica de São Paulo (e que ele mesmo teria feito parte deste grupo).

Uma carta de Monteiro Lobato ao médico baiano Arthur Neiva, em que ele exalta a atividade da organização racista Ku Klux Klan, dá contornos a essa polêmica. Abaixo, foi mantida a ortografia da época.   

“Paiz de mestiços onde o branco não tem força para organizar uma Kux-Klan, é paiz perdido para altos destinos. André Siegfried resume numa phrase as duas attitudes. ‘Nós defendemos o front da raça branca – diz o Sul – e é graças a nós que os Estados Unidos não se tornaram um segundo Brazil’. Um dia se fará justiça ao Klux Klan; tivéssemos ahi uma defeza desta ordem, que mantem o negro no seu lugar, e estariamos hoje livres da peste da imprensa carioca – mulatinho fazendo o jogo do gallego, e sempre demolidor porque a mestiçagem do negro destróe a capacidade constructiva”.

O trecho foi destacado no artigo “Monteiro Lobato e o politicamente correto”, publicado na Revista Dados (Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, a UERJ) foi escrito em 2013, pelos pesquisadores do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade João Feres Júnior e Leonardo Fernandes Nascimento e pela professora-assistente no Departamento de Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) Zena Winona Eisenberg.

O texto analisa a cobertura da imprensa no caso do uso do livro "Caçadas de Pedrinho" nas escolas públicas brasileiras.

Se, por um lado, pesquisadores apontam que Monteiro Lobato era racista baseados em recortes de pensamentos e frases preconceituosos que se multiplicam nas falas das personagens, por outro, estudiosos apontam que é preciso distanciar o entendimento da obra do posicionamento pessoal do escritor em relação ao racismo.

Monteiro Lobato e o racismo

“Caçadas de Pedrinho” nas escolas

Em 2010, o livro “Caçadas de Pedrinho” (1933) foi denunciado por militantes negros como uma obra racista. Dois trechos, relativos à Tia Nastácia, foram destacados:

“Pedrinho pediu à boneca que repetisse a sua conversa com os besouros espiões. Emília repetiu-a, terminando assim:

- É guerra e das boas. Não vai escapar ninguém - nem Tia Nastácia, que tem carne preta. As onças estão preparando as goelas para devorar todos os bípedes do sítio, exceto os de pena”.

“Sim, era o único jeito — e Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro acima, com tal agilidade que parecia nunca ter feito outra coisa na vida senão trepar em mastros”.

Por essa razão, o Conselho Nacional de Educação (CNE) vetou a distribuição da obra nas escolas públicas brasileiras. 

O Ministério da Educação (MEC), entretanto, publicou parecer contrário à proibição do livro, em 2011.  

A pasta entendeu que a leitura da obra entre professores e alunos deve ser feita aliada a uma política antirracista dentro do sistema de ensino público. 

Ficou determinado que as edições de “Caçadas de Pedrinho”, e de qualquer livro que apresente conteúdo preconceituoso ou racista, devem ser impressas com uma nota técnica para orientar o professor a ensinar na sala de aula sobre a contextualização do momento histórico em que o texto foi produzido.  

“É responsabilidade dos sistemas de ensino e das escolas identificar a incidência de estereótipos e preconceitos garantindo aos estudantes e a comunidade uma leitura crítica destes de modo a se contrapor ao impacto do racismo na educação escola”, destacou a relatora Nilma Lino Gomes no texto.

Uso de expressões racistas

Em “Reinações de Narizinho”, originado do conto “Narizinho arrebitado” (1921), é possível destacar outro trecho em que os personagens tratam Tia Nastácia usando expressões racistas. 

Em uma conversa com seu primo, Pedrinho, no capítulo “O circo de Cavalinhos”, Narizinho pede ao público do circo que “não repare [Tia Nastácia] ser preta”:

“Tia Nastácia não sei se vem. Está com vergonha, coitada, por ser preta.

- Que não seja boba e venha – disse Narizinho – eu dou uma explicação ao respeitável público.
(...)

- Respeitável público, tenho a honra de apresentar vovó, Dona Benta de Oliveira, sobrinha do famoso Cônego Agapito Encerrabodes de Oliveira, que já morreu. Também apresento a princesa Anastácia. Não reparem ser preta. É preta só por fora, e não de nascença. Foi uma fada que um dia a pretejou, condenando-a a ficar assim até que encontre um certo anel na barriga de um certo peixe. Então, o encanto se quebrará e ela virará uma linda princesa loura”. 

Declarações racistas

Além do uso de expressões racistas e do reforço do estereótipo de Tia Nastácia na história, a opinião pessoal de Lobato é indicada como “racista e eugenista” por estudiosos, com base na declaração do escritor sobre a Ku Klux Klan e sua participação na Sociedade Eugênica de São Paulo.

Este segundo fato, porém, é contestado no artigo “ O racismo em Monteiro Lobato, segundo leituras de afogadilho”, publicado na revista Passagens: Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, em 2016. 

“A relação de Lobato com a Sociedade Eugênica, presidida pelo médico Renato Kehl, se limitou a publicação, a convite desta instituição e da sociedade sanitarista do Rio de Janeiro, do livro Problema Vital”, destacou o autor do texto, Aluizio Alves Filho, doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília e professor adjunto do Departamento de Comunicação Social da PUC do Rio de Janeiro.

Personagens e autor racistas?

Uma terceira via de análise da obra de Monteiro Lobato está na separação da voz do personagem – em sua literatura infantil – e da voz do autor.

“Nos textos de Lobato escritor infantil, as poucas referências depreciativas à negra Nastácia ou emergem na voz do narrador como lugares comuns linguísticos, herdados da escravidão, ou são destemperos de uma personagem em particular, a Emília, o que nos propõe outra pergunta interessante: que tipo de racista é a Emília?”, destaca o escritor Ottaviano De Fiore no artigo “Racismo no Sítio do Picapau Amarelo?”.

“Não podemos condenar Lobato por falar o Português de seu tempo. Entretanto, o racismo de suas cartas íntimas não derivava da língua portuguesa, e sim, da ideologia eugenista, a qual nunca é citada em suas obras infantis”.

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