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Dá para ser como Amsterdã? Como eles diminuiram carros e se tornaram cidade das bikes?

Publicado 4 Ago 2016 – 04:46 PM EDT | Atualizado 14 Mar 2018 – 09:30 AM EDT
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Congestionamento, estacionamentos lotados, acidentes, quase todos os problemas comuns de trânsito existem em Amsterdã, mas com uma diferença sutil em relação ao que conhecemos: não são os carros os responsáveis, são as bicicletas.

Conhecida como a capital mundial das bicicletas, a cidade holandesa é famosa pelo meio de transporte que move grande parte da população. São 800 mil habitantes, dentre os quais, 40% usam bike para se locomover entre os mais de 500 km de ciclovia, espalhados pelos 219 km² da cidade.

Mas não foi sempre assim. A cidade chegou a ser tomada de automóveis nos anos 70. E então, eles conseguiram transformar essa realidade? Seria possível que isso se repetisse em outros lugares do mundo que queiram diminuir o trânsito de carros e a poluição da atmosfera?

Ciclismo: como estilo de vida

O centro da cidade, com suas ruas estreitas e sinuosas, preservadas desde o século 17, favorecem a locomoção por meio de bicicleta, jeito mais barato e mais rápido do que o transporte público, por exemplo.

Lennart Popma, um desenvolvedor de software de Amsterdã, de 31 anos, conta que utiliza a bike para tudo. “Eu só uso bicicleta como meio de transporte aqui. É de longe o melhor jeito de se locomover pela cidade”, conta ele.

Cerca de 83% da população que anda de bicicleta circula com ela pelo menos uma vez por semana. E 58% usa a bike todos os dias, de acordo com dados da empresa de turismo oficial da cidade, iAmsterdam. Grande parte utiliza a bike inclusive para o transporte de crianças e de pets.

Como esse caminho foi trilhado?

Não é à toa que Amsterdã se tornou  a cidade das bicicletas. Plana, compacta e com clima ameno, a cidade tem vários fatores que a ajudaram a escolher esse modelo de transporte.

“Não temos isso por causa dos nossos genes. Nós construímos isso – e outras cidades também podem”, explica Gerrit Faber, membro da União dos Ciclistas de Amsterdã, ao i Amsterdam.

Andar de bicicleta era um passatempo elitista da década de 1890 e chegou se tornar um dos principais meios de transporte antes da Segunda Guerra Mundial. Tornou-se, inclusive, uma forma de protesto contra os nazistas. Autor do livro “Cidade das Bicicletas”, o americano Pete Jordan, que vive em Amsterdã desde 2002, conta que os alemães odiavam os ciclistas, que impediam a passagem aos veículos e às tropas alemãs de propósito. Virou “uma grande expressão de resistência aos nazistas”, conta ele.

Entretanto, os investimentos em infra-estrutura, por exemplo, só começaram mesmo nos anos 70, depois do boom de carros que a cidade teve com a chegada da tecnologia dos automóveis e das suas consequências, como o aumento de acidentes e a posterior crise do petróleo, que elevou os gastos da cidade.

Não foi da noite para o dia

No ano de 1971, mais de 3 mil pessoas morreram em acidentes de carro, e cerca de 500 eram crianças. A população foi às ruas, então, se manifestar. E foi só em 1975 que o conselho da cidade tomou uma atitude, prometendo mais espaço para os ciclistas e pedestres, reduzindo as possibilidades para os carros.

Ria Hilhorst, do Departamento de Infraestrutura de Amsterdã, “no começo, foi reduzido foi o espaço para os pedestres. Só nos anos 90, quando estacionar no centro da cidade começou a ser cobrado, é que isso ficou mais fácil na prática”, declarou ela no plano montado pelo Departamento de Planejamento Físico de Amsterdã.

Foi então que as políticas públicas de incentivo ganharam mais força e o carro passou a não ser mais tão importante como antes.

Como a cidade se organiza hoje?

Assim como qualquer outro meio de transporte, para andar de bicicleta é preciso seguir regras de trânsito. Do mesmo jeito ocorre com as vias de automóveis, as ciclovias de Amsterdã também são divididas em dois sentidos, possuem faróis, sinais no chão e placas.

Além disso, os ciclistas são orientados a sempre sinalizar quando vão fazer alguma conversão, e precisam ter luzes dianteiras e traseiras na bicicleta durante a noite.

Existem em torno de 80 mil bicicletas a mais que pessoas em Amsterdã. Isso gera alguns problemas para administração da cidade, como congestionamentos e falta de estacionamentos.

Por isso, os ciclistas estão orientados a evitar a hora de pico, que é entre às 8h e às 9h da manhã, e à tarde, entre às 17h e 18h.

Outra questão está no descarte das bikes: o governo retira entre 12 e 15 mil bicicletas do canais que permeiam a cidade todos os anos. Isso sem falar nas bikes que são abandonadas em árvores e postes.

É possível que outra cidade chegue a ser como Amsterdã?

Apesar de Amsterdã ser referência quando se fala na bicicleta como meio de transporte, a decisão não foi uma medida tomada apenas pela Holanda.

A Alemanha, por exemplo, também foi uma  das pioneiras na implantanção do sistema cicloviário após a Segunda Guerra Mundial.

Enquanto a Holanda, uma das vencedoras da guerra, fez essa escolha por ser uma cidade embaixo d’água, desfavorável ao uso do carro,mas com uma boa economia, os germânicos optaram pela bicicleta por questões financeiras e sociais.

“Construir grandes avenidas, asfaltar, tudo isso é muito caro. Como a Alemanha estava sem dinheiro para investir em infra-estrutura, foi uma medida para oferecer mobilidade para quem precisava, já que não podiam oferecer transporte público e a população não tinha dinheiro para comprar carro”, explica Ricardo Correa, urbanista e fundador da empresa de planejamento urbano TC Urbes, e estudioso do planejamento da inserção da bicicleta no Brasil.

Para implantar um sistema cicloviário, não é necessário pensar apenas nos aspectos físicos e geográficos do local. “Pode parecer que sim, mas não existe lugar no mundo perfeito para andar de bicicleta, nem físico, nem geográfico, nem do ponto de vista climático. É tudo uma questão de planejamento”, diz Correa.

E, então, como fazer na prática?

A Alemanha, por exemplo, adotou as bicicletas por uma questão social, solução mais barata e efetiva, do que à Holanda, que seguiu esse caminho muito mais por um motivo estrutural.

A Holanda foi a primeira a perceber que para fazer o transporte de bicicleta funcionar era preciso que ela fosse integrada aos outros sistemas de mobilidade, porque “é quase impossível realizar todos os deslocamentos de bicicleta no dia a dia”.

Então foi desenvolvido um planejamento em que tanto o “andar a pé”, como o bonde, os barcos, os trens, caminhassem juntos, de forma a retirar a sobrecarga de uso dos transportes. Nem todo mundo anda só à pé, nem todo mundo só de carro, ou só de bonde ou só de bicicleta. Existe uma divisão, ainda que a bike prevaleça.

Uma forma de implantar as ciclovias poderia começar pela redução da velocidade das vias, que gera um aumento na noção de espaço, explica Correa. “É uma questão de organização. E não existe um modelo de solução para a cidade inteira, mas se ela for bem implantada, ela privilegia o carro. Não no aumento da quantidade, mas na melhoria da circulação”, completa.

Mas mesmo Amsterdã, que já é consolidada com uma cidade que possui mais bicicletas do que carros, precisa constantemente de políticas públicas para manter esse status.

Atualmente, o plano em ação da prefeitura tenta lutar contra os problemas que surgiram desde o aumento do uso das bikes e oferecer mais conforto para os ciclistas.

As medidas vão desde a criação de mais ciclovias até indicadores de tempo de espera nos semáforos e retiradas de postes que ficam no meio das vias.

É possível no Brasil?

Em São Paulo, por exemplo, uma das cidades com as maiores estruturas cicloviárias do país, está na tentativa de ampliar e aprimorar o sistema cicloviário. “Aqui, a bicicleta tornou-se relevante porque o carro permitiu, por causa do congestionamento, do caos urbano. Ela é uma espécie de solução para a falta de opção, mais do que por uma questão social”, conta o urbanista.

Renan Souza, engenheiro elétrico, é um dos que não concordam com o urbanista. “São Paulo cresceu de uma forma desordenada. Não acredito que a solução do transporte público para os brasileiros seja a bicicleta. São Paulo não foi feita para isso. O jeito é oferecer um transporte público de qualidade e estimular a pessoa a deixar o carro em casa”, completa.

Muitas pessoas também reclamaram da retirada das vagas de estacionamento na rua e em locais que deveriam ser acessíveis, como ocorreu na frente da Associação dos Amigos do Autista, no centro da cidade, e dificultou o desembarque dos jovens, por exemplo.

Ciclovias em São Paulo

Dados de pesquisa do Datafolha e da CET mostram que mais da metade dos paulistanos são a favor da construção e ampliação das ciclovias em São Paulo. E hoje, segundo a prefeitura, mais de 500 mil ciclistas andam pelas ruas da cidade para fazer trajetos diários e 53% usam a bicicleta pelo menos uma vez por semana.

Na capital paulista, a implantação também traz problemas técnicos, como buracos nas ciclovias, com má sinalização, algumas em cima de calçadas, e ainda não chegam a muitas regiões da cidade. Apesar dos mais de 425 km de ciclovias já em funcionamento, muitos lugares ainda não foram contemplados.

“Mas as dinâmicas de São Paulo são diferentes da Holanda. A ideia é que a bicicleta seja uma das soluções”, explica a ativista Marina Harkot, socióloga e membro do Conselho Municipal de Trânsito e Transporte (CMTT).

A integração entre os meios de transporte ainda é fraca. Os únicos sistemas de compartilhamento público de bicicletas são o Bike Sampa e o CicloSampa, que não atendem grande parte da cidade, por exemplo, e nem sempre fazem conexão com outros meios.

“É irreal querer que uma pessoa que trabalhe mais longe de casa utilize só a bicicleta. Então, é necessário que existam sistemas combinados, inclusive com o carro. Uma estrutura adequada para que a pessoa pedale até o metrô, possa deixar a bicicleta e siga o caminho nos trilhos”, exemplifica Marina.

Dados da Pesquisa de Mobilidade do Metropolitano de São Paulo (2012) reforçam a opinião da socióloga: o cidadão que anda de bicicleta tende a ficar apenas 27 minutos nesse meio de transporte, ao passo que aqueles que utilizam coletivo ou carro passam, em média e respectivamente, 1 hora e 7 minutos e 31 minutos nesses veículos. A maioria dass pessoas está disposta a caminhar por somente 15 minutos do percurso.

Sendo assim, em uma cidade de 1.521 km² como São Paulo (IBGE), a ativista argumenta que não se pode esperar que a maioria dos moradores consiga se deslocar até o trabalho usando unicamente a bike. “É o meio de transporte ideal para distâncias até 8 km. O paulistano, que costuma trabalhar mais longe que isso, não tem como depender somente dele.”

A ativista ainda conta que as discussões para o planejamento da implantação do sistema cicloviário e melhorias no que já existem acontecem o tempo todo dentro do Ministério do Transporte. Existe um departamento que estuda isso desde o anos 70, conta ela.

“Ciclovias quebram paradigmas, estimulam novos ciclistas. É preciso incluir as pessoas que não usam carro também. E o ideal é repensar a cidade como um todo, não só para a bicicleta. O ideal é planejar uma cidade inteira para favorecer todos os tipos transportes ”, completa a socióloga.

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