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A agressão para além da crítica, o direito de condenar e a necessidade de apontar vilões

Publicado 10 Fev 2021 – 11:12 AM EST | Atualizado 10 Fev 2021 – 11:12 AM EST
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No ar há apenas duas semanas, o “Big Brother Brasil” 21 não perdeu tempo e começou com as polêmicas logo de cara. Este ano, porém, algo diferente está chamando atenção de todos. Após um início de programa marcado pelo medo do chamado " cancelamento" do público, os desentendimentos entre o elenco se transformaram em verdadeiros juris, em que a cada momento uma nova pessoa é colocada no banco do réu sem direito a defesa, voz ou presunção de inocência. Enquanto isso, o público se revolta com tamanha injustiça e agressividade - e usa toda a sua indignação para fazer exatamente o mesmo.

Logo nas primeiras festas, um conflito com Lucas Penteado colocou a participante Kerline Cardoso no posto de cancelada dentro e fora da casa, inclusive sob graves acusações de discriminação. Nos dias que se seguiram, foi o próprio Lucas quem, em meio a conflitos estridentes e muitos ruídos de comunicação, passou a ocupar o cargo e foi até isolado pelo grupo.

A penitência imposta ao ator, no entanto, fez o público mudar de opinião rapidamente. Visto agora como vítima de um castigo desproporcional e desumano, o rapper foi absolvido pelos telespectadores e sucedido no banco do cancelado pela participante apontada como sua algoz, Karol Conká, que, fora da casa, passou a ser acusada de praticar bullying e tortura psicológica.

Algo similar aconteceu com Juliette Freire que, inicialmente, foi ridicularizada na internet por sua personalidade expansiva e criticada por prejudicar os companheiros de confinamento ao extrapolar o tempo no confessionário para uma tarefa obrigatória para todos. Porém, ao ver que a paraibana começou a sofrer o mesmo tipo de ataques dentro da casa - e ser vítima até mesmo de xenofobia -, o público entendeu os atos como desproporcionais e mudou de ideia, passando a defendê-la.

Simultaneamente, Lucas continuou sendo punido, ridicularizado e inclusive xingado por alguns brothers. No ápice das ofensas, ele chegou a ser expulso da mesa do almoço, sendo obrigado a comer sozinho, e foi chamado de abusador ao vivo no programa. Isso, porém, durou até o domingo (7), quando ele teve sua sexualidade questionada após se assumir bissexual e ficar com Gilberto Nogueira, foi acusado de ameaçar a família de participantes do reality e acabou desistindo do jogo. Fora do programa, ele foi recebido quase como mártir.

Outros conflitos menores que se desenrolaram no confinamento tiveram características similares, com pouquíssima compreensão, certo radicalismo e, ao que parece, nenhum espaço ou crédito para arrependimentos. A própria produção deu essa dica aos participantes ao, em um jogo, pedir para que eles apontassem quem seriam os "canceladores" da casa.

Mas não adiantou: brothers e telespectadores seguem na dinâmica intolerante e pouco empática de desumanizar aqueles que erram, sem se interessar pelos porquês ou se preocupar com a educação básica.

Uma coisa é criticar, outra é agredir

Para a maioria das pessoas, está claro que o que está acontecendo dentro do "BBB" vai muito além do apontamento de críticas e beira condutas criminosas.

“O bullying e a tortura psicológica têm o mesmo fundo: subjugar a vítima exercendo autoridade em uma relação de desigualdade de poder, humilhando e provocando baixa autoestima, angústia, estresse”, afirma a psicóloga Daniela Generoso, explicando que a diferença entre estas duas práticas está na presença de uma “motivação” - seja ela real ou existente apenas na mente do agressor.

“O bullying é a prática de atos de violência física moral, material, verbal, social, sexual ou psicológica de forma repetitiva, enquanto a tortura psicológica é fruto do que causa o bullying. Na casa, a atitude de ofender o Lucas, por exemplo, foi motivada por uma atitude que ele teve, e no bullying não existe motivação, apenas vontade de diminuir a vítima com tom de brincadeira”, explicou a profissional, defendendo que o que tem ocorrido no reality pode, sim, ser definido como tortura psicológica.

Conforme explica Daniela, todas estas práticas proporcionam consequências graves e possivelmente duradouras para as vítimas, que precisam ser acolhidas e podem precisar de auxílio psicológico. A tortura psicológica e o bullying, segundo ela, podem resultar em depressão, pânico, ansiedade, isolamento, dificuldades em se relacionar, uso abusivo de drogas ou bebidas e até suicídio.

Outra possível consequência do bullying, segundo a profissional, é a reprodução da violência contra outros.

Todo mundo quer um vilão

À primeira vista, é muito fácil julgar como maldosa e desprezível a pessoa que comete um ato de crueldade contra outro ser humano. Mas e quando este ato é uma resposta a alguma maldade ou injustiça anterior? Certamente não deixa de ser cruel, mas neste caso ainda é simples apontar dedos para o autor?

Daniela afirma que há, sim, a possibilidade de o agressor praticar tortura psicológica ou bullying porque crê estar certo ou por acreditar que esta é realmente a forma de se resolver uma questão devido a experiências passadas - e esta confusa dinâmica, inclusive, é algo possível de se observar na casa do “BBB”.

Em vários momentos, diversos participantes se disseram ofendidos, amedrontados ou irritados com comportamentos de Lucas e Juliette, e muito se falou sobre saúde mental neste contexto. Para alguns, “dar bronca” neles seria uma forma de proteger o próprio psicológico. A própria Karol revelou que sofria na infância castigos parecidos com aqueles que estava impondo a outros participantes.

“Agir com agressividade nem sempre é de propósito. Pode ser uma construção estrutural, ou seja, uma repetição daquilo que o agressor acredita ser verdade. A violência é um ciclo aprendido e estrutural que provoca medo, angústia, raiva, sensação de desamparo. Eu agrido para não sentir isso. Eu agrido para não ser agredido”, disse ela.

Isso é especialmente comum em indivíduos que sofreram violência estrutural ao longo da vida, ou quando conseguem deixar de ser o alvo. Sobre a atitude de Lucas de se juntar ao grupo para "zoar" Juliette nos momentos em que ele não estava na berlinda, por exemplo, a psicóloga discorre: "A reprodução de práticas de violência é comum em indivíduos que já passaram pelo mesmo, uma forma dele não se sentir único dentro do contexto da violência.”

Nada justifica

A presença de um motivo e um histórico conturbado ajudam a compreender as razões complexas que levam as pessoas a agir de determinadas formas. Porém, não justificam ou dão o direito de agredir ou subjugar o outro.

“A proteção da saúde mental inclui proteger a saúde mental do outro. Uma vez que eu entendo que o outro me fez mal, não existe a necessidade de ‘cancelamento’, palavras que provocam baixa autoestima e muito menos desprezo. Eu posso dizer ‘não’ sem ferir o outro. Eu posso dizer ‘você me faz mal’ e me afastar sem incitar o grupo”, opina Daniela.

No fim das contas, uma ação errada como fruto de uma construção social involuntária não deixa de ser errada. “O erro é erro e precisa ser orientado ou punido”, pontua a psicóloga.

De quem é o direito de “cancelar”?

Tema de um “jogo da discórdia” no próprio programa, o “ cancelamento” tem sido uma prática muito comentada nas redes sociais, e ela consiste basicamente em responder uma fala ou atitude errônea de alguém com a promessa de exclusão social. Após errar ou se comportar de maneira inadequada, aquela pessoa passa pelo “tribunal virtual” e é, então, rechaçada.

Apesar de ter se tornado até um meme na internet e de muitas pessoas não levarem a sério, porém, a “cultura do cancelamento” tem trazido consequências ruins para os envolvidos e também está bastante presente no programa - mas não apenas dentro da casa. Além de se fazer clara na exclusão de Lucas e Juliette, esta prática também tomou conta das redes, onde espectadores “cancelaram” quem agrediu a dupla.

Em nenhum destes contextos, segundo Daniela, o “cancelamento” deveria ser uma opção. “O cancelamento é prática de alguém que acredita ser melhor do que o outro, não entendendo que todo erro necessita de uma segunda chance. Todos nós erramos, em um grau mais alto ou mais baixo. O ato de cancelar não permite que o outro cresça. Cancelar a atitude errada é certo, mas cancelar o indivíduo é crueldade”, defende.

Com base no fato de que agressores podem agredir devido à própria vivência repleta de violência, o “cancelamento” é um tiro que tende a sair pela culatra, já que pode motivar a criação ou ampliação de um ciclo de agressões. Para a psicóloga, se faz clara a necessidade de punir quem comete tortura psicológica, bullying e xenofobia, mas isso cabe às estruturas formais da sociedade através da Justiça, e não a cada indivíduo por meio de vinganças.

Ao falar do assunto, ela enfatiza a necessidade de aprendizado. “É preciso punir o ato a partir da orientação porque, se estamos agindo de forma inconsciente, temos a chance de entender, a oportunidade de aprendizado. O ciclo do ódio só se dá se a punição não for ensinamento”, afirma Daniela, que é direta ao responder a quem compete a punição. “Quem pode definir isso é a lei”, conclui.

"Big Brother Brasil" 21

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