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Como Vitória em 'Amor de Mãe': 3 mulheres relatam assédio no trabalho após engravidar

Publicado 30 Jan 2020 – 05:00 PM EST | Atualizado 7 Fev 2020 – 10:19 AM EST
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Desde o início da trama, Vitória, personagem de Taís Araújo em "Amor de Mãe", mostrou que é uma advogada muito competente e bem-sucedida. Não foi à toa que ela ganhou a confiança de seu principal cliente, o vilão e empresário Álvaro da Nóbrega (Irandhir Santos). Braço direito do dono da PWA, Vitória sempre resolveu os maiores problemas de Álvaro, que considerava a advogada brilhante. Entretanto, após realizar o sonho de ser mãe, ela passou a sofrer assédio moral no trabalho.

A situação da personagem de Taís Araújo está bem longe de ser apenas ficção. Ao contrário, representa bem o cenário de milhares de mulheres no Brasil que enfrentam condições iguais ou até piores que Vitória.

Personagem de Taís Araújo sofre assédio por ser mãe

Vitória se tornou mãe ao adotar Tiago (Pedro Guilherme Rodrigues). Logo depois, ela engravidou de Sofia e passou a criar dois filhos. Em ambos os casos, ela não tirou licença-maternidade.

Se trabalhasse em regime CLT, ela teria direito à licença-maternidade de 120 ou 180 dias, dependendo da política empresa. E mesmo atuando como autônoma, ela teria acesso ao salário-maternidade, direito das mulheres que trabalham e contribuem para a Previdência Social (INSS).

Como toda mãe, a personagem eventualmente precisa se ausentar e cancelar reuniões de trabalho algumas vezes para dar atenção especial aos filhos, por questões de saúde ou outros eventos.

Certo dia, enquanto estava em uma reunião com Álvaro, Vitória recebeu um telefonema da diretora da escola onde Tiago estuda, dizendo que o menino havia caído e batido com a cabeça.

Desesperada, ela pegou sua bolsa e foi em direção à porta, mas antes de sair, foi questionada pelo empresário sobre "abandonar" a reunião. Ao responder que precisava levar o filho ao hospital, ouviu a seguinte frase de Álvaro: "Você era mais competente antes de se tornar mãe".

Essa não foi a única vez que o empresário disse frases como essa. Ele chegou a afirmar que a maternidade mudou a advogada e que ela não tem mais aquele "sangue no olho" pelo trabalho.

Cruéis, as falas parecem irreais, mas são mais comuns do que se imagina e, como explica a advogada Gabriela Souza, sócia do escritório Gabriela Souza - Advocacia para Mulheres, representam assédio moral no ambiente de trabalho:

"Ela está sendo humilhada e abalada psicologicamente. Ele usa a maternidade, que é um momento sensível para a mulher, para deixá-la abalada no âmbito profissional quando diz que depois de se tornar mãe, ela não está mais rendendo. Isso configura assédio moral".

Apesar de ter consciência da natureza abusiva da relação de trabalho, Vitória demorou para deixar de trabalhar para Álvaro por causa do grande prejuízo financeiro envolvido - ela teria que pagar uma multa e deixaria de receber o salário que mantém a casa e os filhos.

Guardadas as devidas proporções, já que a personagem é riquíssima, o cenário de muitas mulheres brasileiras é bem parecido com o da personagem.

Maternidade x trabalho: cenário no Brasil

No Brasil, o cenário encontrado por muitas das mulheres que se tornam mães se assemelha bastante ao da personagem de Taís Araújo. Muitas delas sofrem assédio após terem seus filhos ou até durante a gravidez, ou ainda são desligadas da empresa ao retornar da licença-maternidade.

Um estudo realizado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), constatou que metade das mães que trabalham são demitidas até dois anos após voltar da licença-maternidade, sendo que muitas delas, são desligadas um mês após o retorno.

"Esse número demonstra que existe a desvalorização do trabalho da mulher" , disse Gabriela, que ainda lamentou o fato de não existir nenhuma lei que proíba ou puna as empresas por dispensar essas mães. "Infelizmente, não há uma consequência moral para isso".

Isso torna o cenário desesperançoso para mulheres que trabalham e pretendem formar suas famílias e terem seus filhos.

Existem leis que podem punir empresas e pessoas que praticam assédio moral com seus funcionários. O problema, é que muitas mulheres ficam tão abaladas psicologicamente, que acabam pedindo demissão e não lutam por seus direitos, seja por falta de informação ou medo de ficarem "manchadas" no mercado de trabalho.

Gabriela listou algumas situações que configuram assédio contra mães e gestantes, são elas:

  • Exigir exame de sangue para comprovar se a funcionária está grávida.
  • Não permitir intervalo de amamentação.
  • Insinuar que a mulher está usando a maternidade para tirar vantagem, como sair mais cedo por necessidade, por exemplo.
  • Aumentar a demanda de trabalho visando que a mulher peça demissão porque não vai conseguir dar conta.
  • Diminuir a demanda de trabalho ou desviar a função.

Após se tornarem mães, elas passaram por situações humilhantes no trabalho

"Me senti pressionada por algo que não podia controlar", Juliana Couto

A jornalista Juliana Couto ouviu frases absurdas desde o início da gestação. Pouco tempo depois de completar o período de experiência na agência de publicidade onde trabalhava como revisora, em regime CLT, ela descobriu que estava grávida.

A partir de então, começaram os olhares tortos e desconfiados de que ela havia escondido a gravidez até completar os três meses de experiência.

Em seguida, Juliana começou a ser questionada sobre as ausências e atrasos por causa do pré-natal. "Cheguei a marcar consultas e exames em laboratórios que eu nem gostava, só pela proximidade do trabalho".

Vale ressaltar que uma das leis do regime CLT prevê que, durante a gestação, a mulher se ausente pelo menos por 6 vezes para se submeter aos exames do pré-natal.

Como é natural de uma gravidez, tinha dias em que ela estava mais disposta e outros, nem tanto. Esse desequilíbrio hormonal lhe rendeu uma reunião a portas fechadas com seu chefe e com o responsável pelo RH.

quote:"Eles questionaram sobre o meu rendimento, que estava mais baixo. Comecei a chorar, tentei me explicar e prometi que iria tentar melhorar. Mas me senti pressionada por algo que não podia controlar".

Com quase 8 meses, Juliana foi diagnosticada com diabetes gestacional e foi afastada do trabalho. Pouco mais de um mês depois, teve seu bebê, cumpriu a licença-maternidade e quando voltou, se demitiu.

quote:"Eu trabalhava longe e a escola que tinha perto do meu trabalho tinha uma mensalidade que consumiria quase todo meu salário. Eu também não queria terceirizar a criação do meu filho e resolvi pedir demissão", disse a jornalista.

Para a advogada Gabriela Souza, Juliana sofreu grave assédio moral, de diversas espécies, que poderiam resultar em um processo: "humilhação, ridicularização, troca de local de trabalho e pressão, que pela regra trabalhista, configura assédio moral."

Na época, Juliana até pensou em contratar um advogado e entrar na justiça contra a empresa, mas não conseguiu achar um especialista em causas femininas e desistiu, pois achava que não ganharia o caso.

Hoje, com dois filhos, Miguel e Madalena, ela atua como jornalista autônoma produzindo conteúdos digitais para mulheres e mães.

"Antes de minha filha completar 30 dias de vida, a dona da empresa me chamou para voltar", Cristina

Grávida da segunda filha, Cristina* atuava como coordenadora da área financeira de uma empresa em regime CLT e dois meses antes de sair de licença-maternidade, treinou uma outra mulher para ficar em seu lugar.

Só que pouco tempo depois de seu bebê nascer, sua chefe pediu que ela voltasse ao trabalho.

quote: "Antes mesmo de minha filha completar 30 dias de vida, a dona da empresa me chamou para voltar, pois a pessoa que me cobria não estava dando conta e seria demitida".

Com medo de perder o emprego, ela atendeu ao pedido da chefe, interrompeu a licença e ficou mais dois meses trabalhando e preparando um homem para assumir suas responsabilidades enquanto ela retornava ao tempo restante com a filha recém-nascida.

De acordo com a advogada, é direito da mulher gozar da licença maternidade. "Esse tempo é importante para ela e para a criança, que tem tutela máxima do estado brasileiro e que precisa da mãe perto. Ou seja, descumprir a licença maternidade é desrespeitar os direitos da mãe e da criança."

Acabados os dias restantes da licença-maternidade, Cristina voltou ao trabalho, mas quando chegou à empresa, o homem que havia treinado estava com cargo e salário superiores ao dela.

Oito meses após o retorno da licença, Cristina foi demitida e tinha todo o direito de acionar a justiça, mas não o fez por medo: "Até pensei, mas outras empresas poderiam pedir referências ou até mesmo ter um jurídico que fizesse pesquisa de processos em meu nome. Creio que me prejudicaria nesse sentido".

"Me mandou tomar um café ou energético para ver se ficava mais espertinha", Karin Martins

A estilista Karin Martins trabalhava para uma empresa que desenvolvia modelos esportivos e fitness e, após dois anos lá, foi escolhida para ficar à frente de uma nova coleção.

Como tinha acabado de se casar, sua chefe lhe disse que não gostaria que ela engravidasse naquele momento e Karin não se importou, pois não pensava em ser mãe naquele momento.

Karin acabou engravidando de surpresa quando completou dois meses de casada e quando sua chefe descobriu gritou em alto e bom som: "Karin, então você tá grávida, né? Gravidez não é doença, então não quero saber de você faltando por conta disso, usando gravidez de desculpa".

Segundo Karin, a chefe passou então "diminuir" suas responsabilidades. "Eu atendia aos fornecedores até então... Depois da gravidez ela começou a não permitir mais eu atender e falava na frente dos fornecedores que eu não iria mais atender pois eu estava grávida e não tinha mais competência para tal tarefa", conta.

Além disso, ela vivia dizendo que Karin estava muito lerda: "Um dia ela mandou eu tomar café ou energético pra ver se ficava mais 'espertinha'."

No 8º mês de gestação, Karin foi rebaixada de cargo e, posteriormente, foi tirada da parte de estilo e passou para a loja virtual, descrevendo peças no site.

Para a advogada, Karin foi humilhada e ridicularizada ao ser exposta diante de toda a empresa, ser rebaixada de cargo e acusada de estar incapacitada por causa da gravidez.

Pouco tempo depois, ela teve seu bebê e após cumprir a licença-maternidade ela voltou à empresa, onde sua mesa estava vazia e suas coisas, em uma sacola.

Seu computador não tinha mais login nem nada da empresa instalado e após um mês, quando passou a estabilidade, ela foi mandada embora.

quote:"Na época ainda me falaram que era porque sentiram que eu não tinha o mesmo amor e empenho pela empresa e ainda falaram sobre a questão de eu demorar muito tempo no banheiro tirando leite".

Pela lei CLT art. 396 diz que toda a mãe deve ter dois períodos de 30 minutos cada para amamentar o seu bebê até que ele complete seis meses de vida.

Karin ainda trabalha em confecção, mas pretende estruturar a própria marca e ainda tem o objetivo de ajudar mães que perderam o emprego a criar um fonte de renda.

Rede de apoio ajuda mães a se recolocar no mercado

Juliana, Cristina e Karin conseguiram uma recolocação no mercado de trabalho, mas nem sempre as mulheres que passaram por situações similares às delas retornam ao mercado.

Quando tentam retomar a carreira, são intimidadas e até barradas durante a entrevista com perguntas do tipo "Você tem filho?", "Com quem ele vai ficar enquanto você trabalha?", "Pretende ter mais filhos?".

Por não conseguirem retornar ao posto de trabalho, muitas delas encontram no empreendedorismo uma saída. Atualmente, existem algumas redes de apoio que já fazem isso.

Uma delas é a Maternativa. Criada pela pedagoga Ana Laura Castro com o apoio da sócia, a executiva, Vivian Abukater, a rede propões a discutir a relação entre mulheres que são mães com o mercado de trabalho e a ajudá-las com a recolocação.

Para isso, criaram a loja virtual Compre das Mães, onde essas mulheres podem vender diversos produtos, desde artesanatos, a produtos automotivos, para que elas consigam, aos poucos, voltar a trabalhar e ganhar dinheiro.

Além disso, o Maternativa ainda possui um grupo no Facebook onde as mães podem trocar experiências, ideais e compartilhar histórias, vagas de emprego e o que mais quiserem.

A maternidade é intensa e, principalmente nos primeiros meses de vida do bebê, deve ser vivida por completo. Por isso, é importante que a mulher tenha uma rede de apoio e se sinta acolhida no trabalho, em casa ou até mesmo na internet.

*Cristina pediu anonimato em relação ao sobrenome, por isso só utilizamos seu primeiro nome.

Direitos trabalhistas das gestantes

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