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Por que assumir o cabelo crespo vai muito além da estética?

Publicado 1 Abr 2019 – 10:10 AM EDT | Atualizado 1 Abr 2019 – 10:10 AM EDT
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Expressões do tipo "cabelo ruim" e frases como “cabelo crespo está na moda agora, né?” são usadas até hoje e, na maioria das vezes, quem fala não tem a real noção do quanto esses comentários são racistas e desmerecem o movimento de luta pela visibilidade negra.

Afinal, o que é ruim? O que te incomoda, o que não gosta, certo? E a forma como a cultura e as características físicas dos negros – cabelo, cor da pele e traços - foram historicamente expostas como algo negativo e inferior é, no mínimo, cruel.

Esse tipo de comportamento de desvalorização da raça negra e imposição de padrões culturais e estéticos brancos afeta diretamente meninas e meninos ainda na infância. Elas, no entanto, são as mais pressionadas.

“É histórico que os negros para serem aceitos nos espaços sociais e no mercado de trabalho eram diretamente influenciados pelos padrões estéticos que beneficiavam aqueles mais próximos da estética branca. Daí o alto contingente de mulheres negras com cabelos alisados. Aliás, muitas destas mulheres sofreram ojeriza aos seus cabelos crespos, vítimas de preconceitos, principalmente no início da escolarização”, explica Ivy Guedes, professora universitária e fundadora da Marcha do Empoderamento Crespo de Salvador, no artigo Estética Afro-Diáspora e o Empoderamento-Crespo.

Por isso, quando uma mulher negra decide assumir o cabelo natural, não é apenas uma decisão estética. Envolve um processo na maioria das vezes muito difícil de autoaceitação e busca de identidade.

A acadêmica Ivy Guedes avalia que o movimento de transição capilar e retomada dos fios naturais “tem contribuído para a autoestima e afirmação da estética negra a partir do empoderamento crespo e, especialmente, tornando essa afirmação estética mais uma bandeira da luta antirracista”.

E se alguém ainda tem dúvida que a força desse movimento ultrapassa qualquer modismo, os números comprovam. Um estudo realizado pelo Google BrandLab revelou que, há dois anos, as buscas por cabelos cacheados no Google superaram a procura por cabelos lisos pela primeira vez no Brasil, com um crescimento de 232% entre 2015 e 2017. Com relação aos crespos, o interesse foi ainda maior. A busca por cabelos afro aumentou 309% no mesmo período.

“Comentários racistas me seguiam por onde fosse”

Giulia Garcia tinha apenas 5 anos quando foi ao psicólogo pela primeira vez. Negra, cabelos crespos, estudava em uma escola particular do Morumbi, em São Paulo, onde as demais meninas da sala eram brancas e tinham cabelos lisos. Ela não entendia porque era diferente. Nenhum esforço da família para levantar sua autoestima era suficiente. “Eu me sentia feia”.

Os colegas da escola aproveitavam essa insegurança para insultá-la. Ela nunca esqueceu o dia em que um garoto destilou sua crueldade infantil dizendo que o cabelo dela "parecia um monstro". E isso só piorou nos anos de Ensino Fundamental: "cabelo duro, palha de aço - os comentários racistas me seguiam por onde fosse”.

Apaixonada por natação, passou os dez anos de prática do esporte ouvindo insultos. “Diziam que meu cabelo era impermeável. Que nem precisava usar touca”. Sofrendo com a pressão, aos 7 anos, ela já odiava a própria aparência. A mãe sempre quis que a filha deixasse o cabelo natural. No entanto, não teve outra opção ao ver a autoestima dela tão abalada. Foi quando permitiu que Giulia alisasse o cabelo pela primeira vez.

“O resultado não foi o que eu queria e o cabelo ficou esticado”. Ainda infeliz com a própria aparência, ela passou mais cinco anos usando o cabelo apenas preso. Quando fez 14 e começaram a surgir mais eventos e festas, ia ao salão de beleza uma vez por semana para fazer escova.

Aos 15, o cabelo já havia voltado ao natural, mas ela não aceitava. Na mesma época, surgiu a escova marroquina, um tipo de progressiva, e Giulia alisou novamente. O resultado? Um liso esticado e artificial que nada tinha a ver com ela.

Cansada de tantos anos de não aceitação, preconceito e uma insatisfação constante ao olhar no espelho, ela tomou coragem para fechar esse ciclo e se aceitar. Esperou o cabelo crescer por seis meses e cortou bem curtinho. “Eu aprendi a amar o meu cabelo, minha aparência. Não dou mais importância para os comentários tóxicos”. Hoje com 20, ela já exibe o cabelo afro há 5 anos.

É preciso exaltar a beleza dos fios crespos, sim!

Outro dado interessante do estudo feito pelo Google BrandLab é que 24% das mulheres de 18 a 24 anos declaram ter cabelo cacheado. Por outro lado, quanto maior a idade das entrevistadas, notou-se mais dificuldade em reconhecer o próprio tipo de cabelo como crespo ou cacheado.

Sabe quando alguém da sua própria família não entende os motivos que te levaram a parar de alisar o cabelo? Sim, isso pode ser irritante. Mas é preciso ter paciência com o choque de geração.

Provavelmente, aquela tia ou avó, que também são negras e têm fios crespos, já sofreram muito preconceito por causa dos cabelos naturais. E também foram vítimas do que a ativista política americana bell hooks, autora do livro infantil Meu Crespo é de Rainha, definiu como “política de representação que sistematicamente desvaloriza a negritude”.

Na prática, é a falta de representatividade em vários segmentos sociais e culturais. Afinal, hoje podemos contar com uma rede ampla e mais aberta de representação e apoio nas redes sociais. Amanda Mendes, Juliana Franceschi, Carol Soares, Ana Lídia Lopes e Carol Mamprim são apenas algumas das muitas influenciadoras.

Mas quando falamos de mídias tradicionais, a realidade é outra. Prova disso é que após quase 50 anos de Jornal Nacional, a jornalista Maria Julia Coutinho foi a primeira mulher negra a assumir a bancada no último dia 16 de fevereiro.

No mundo ideal, isso não deveria ser notícia. E sim uma consequência natural. Uma profissional competente que conquistou seu espaço. Para milhares de meninas e mulheres, vê-la nesse lugar, que até hoje só havia sido ocupado por mulheres brancas, representa muito. Representa uma possibilidade, inspiração.

Uma mulher negra e com o cabelo crespo natural, que não precisou negar suas raízes e mudar sua estética para se adequar a um padrão no mercado de trabalho. Essa imagem diz muito! E, definitivamente, não é só estética.

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