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Peleumonia e raôxis: o que aprendemos com essa história toda?

Publicado 4 Ago 2016 – 09:59 PM EDT | Atualizado 20 Mar 2018 – 12:57 PM EDT
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Nas últimas semanas, uma conversa ocorrida dentro de um consultório hospitalar no interior de São Paulo ganhou as redes sociais e, consequentemente, milhares de opiniões, em sua maioria compostas por críticas. O motivo foi o deboche feito por um médico em relação à linguagem de seu paciente, que, ao invés de usar as palavras pneumonia e raio-X, disse “peleumonia” e raôxis”, como contou o “doutor” em um post. Mas, afinal, depois de muitas opiniões, troca de agressões verbais e retratações, o que nós devemos levar desse caso?

Entenda o caso 

A origem da polêmica foi uma foto postada pelo médico Guilherme Capel nas redes sociais. Na imagem, ele aparece segurando uma folha de receituário médico do Hospital Santa Rosa de Lima, na cidade de Serra Negra (SP), com os seguintes dizeres escritos à caneta: “Não existe PELEUMONIA e nem RAÔXIS”. Logo abaixo, estava o carimbo do médico, com seu nome, profissão e número de registro no Conselho Regional de Medicina.

De acordo com informações do site de notícias G1, a “receita” de uso da norma culta da língua portuguesa foi dada 20 minutos depois de Guilherme ter atendido o mecânico José Mauro de Oliveira Lima, de 42 anos.

Em entrevista ao site, o enteado de José Mauro, Claudemir Thomaz Maciel da Silva, 25, falou sobre o tratamento recebido pelo macânico durante a consulta: ”Quando meu padrasto falou pneumonia e raio-X de forma errada, ele deu risada. Na hora, não desconfiamos que ele iria debochar depois na internet. O que ele fez foi absurdo. O procurei e escrevi para ele na rede social que, independente dele ser doutor, não existe faculdade para formar caráter. Assim que ele viu minha postagem, apagou a foto. Ele não quis conversar com a gente".

Claudemir contou também que José Mauro estudou poucos anos, já adulto, e teve de parar quando o enteado contraiu tuberculose e era necessário dinheiro para pagar pelo tratamento.

Muitas outras pessoas também ficaram revoltadas com o tratamento dado pelo médico ao mecânico. Na página do Facebook de Guilherme, centenas de pessoas deixaram comentários em reprovação ao ato.

Um em especial, não diretamente relacionado ao médico, chamou muita atenção. Outra médica postou um texto curto e singelo, com um toque de poesia, para mostrar a maneira mais respeitosa de lidar com as diferenças de linguagem relacionados às classes sociais e às oportunidades de aprendizado dentro de um consultório médico.

A postagem de Júlia, que é negra, viralizou, e junto de muitos elogios vieram alguns comentários racistas.

Depois de toda a repercussão negativa do caso, Guilherme Capel pediu desculpas a José Mauro e disse que o mecânico agora é seu amigo:

O que devemos levar de toda essa história 

Existe um motivo para falar “errado” 

Atitudes como a do médico estão inseridas na realidade socioeconômica e cultural de uma parcela da população que tem acesso - e fala - à norma culta da língua portuguesa e com mais frequência se forma “doutora”. No entanto, em um país tão plural e com tantas disparidades econômicas, existem muitas outras pessoas que não tiveram a mesma oportunidade e, por isso, falam de uma maneira diferente.

De acordo com dados de 2013 do IBGE, no Brasil, apenas 7% dos estudantes do ensino superior fazem parte da parte dos 20% da população com menor renda. Por outro lado, 20% dos mais ricos correspondem a 39% dos estudantes das faculdades e universidades. De maneira geral, a entrada no ensino superior e os anos de estudo aumentam proporcionalmente à renda.

Diferença de linguagem não é piada

Para o psicólogo Hélio Roberto Deliberador, professor do Departamento de Psicologia Social da PUC-SP, nós vivemos em um momento em que falta treino para uma vida plural, inclusive de linguagem, e muitas vezes essa dificuldade vêm à tona em forma de piada. No entanto, o “humor” não torna a responsabilidade em relação ao que é falado menor, ao contrário, ela pode também ser criminosa. Lembre-se que qualquer discriminação, de qualquer tipo e em qualquer lugar, não deve ser aceita.

Desrespeito no consultório: nunca aceitar 

A situação fica ainda mais grave quando o desrespeito com a diversidade ocorre dentro de um contexto profissional. “Além de ferir o código ético da medicina, o deboche do paciente fragiliza ainda mais uma pessoa que, por estar doente ou por não ter estudado e estar frente ao 'doutor”, já está vulnerável', explica o professor.

Para ele, o profundo impacto tecnológico sobre a área da saúde torna necessária a necessidade de reforçar o aspecto filosófico da medicina. “O médico tem que ver seu paciente em sua condição humana, com toda sua fragilidade, e tratar com respeito questões de linguagem, diferenças, colocações e ser cuidadoso em suas explicações”, explica “Medicina não é só técnica, é também o cuidado e o respeito com o ser humano”.

Agressões na internet são igualmente graves

A internet e as redes sociais contribuem para explicitar esse cenário, uma vez que comentários e opiniões podem viralizar sem que a pessoa se dê conta que ela não está “escondida” por trás de um computador e pense duas vezes antes de teclar. “As pessoas se esquecem de que podem estar desrespeitando outras pessoas nesses meios”, explica o especialista. “No entanto, hoje a vida 'real' é muito influenciada pelo 'virtual'”.

Peleumonia existe, sim, e raôxis também 

A vigilância sobre a norma culta do português é sempre muito rígida, mas muitas vezes esquecemos que a principal função da língua é comunicar. E além de passar o significado das palavras, o jeito de falar também pode dizer muito: diferentes pontos de vista, modos de viver e histórias estão escondidos por trás de uma peleumonia que existe sim - alguém a está sentindo.

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