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As várias faces da transexualidade: como ciência, psicologia e lei encaram a questão

Publicado 28 Abr 2017 – 06:00 AM EDT | Atualizado 16 Mar 2018 – 10:29 AM EDT
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“Eu tinha medo. Medo de não ser aceita pelos pais, medo de apanhar na rua. Me escondi e vivi minha vida dupla, mas assim a gente não pode ser feliz. Mesmo sabendo dos riscos, pensei: eu vou!”. Aos 28 anos de idade, Samara finalmente nasceu. Ela é uma das 25 milhões de pessoas transgênero espalhadas pelo mundo todo. São pessoas cujo sexo biológico não corresponde ao gênero com o qual se identificam: têm aparelho reprodutivo masculino, mas se entendem como mulheres, e vice-versa.

Identificar-se com o gênero que não é o de origem biológica é um quadro que as ciências, sejam as naturais ou as humanas, ainda não sabem explicar. Médicos, biólogos e psicólogos procuram encontrar as respostas para entender a situação trans e, principalmente, para proporcionar melhores condições de vida para essa parcela da população.

E a situação da população trans no Brasil é urgente. Neste sentido, somos o país que mais mata no mundo. Segundo o relatório Trans Murder Monitoring, entre janeiro de 2008 e dezembro de 2015, exatas 2016 pessoas trans foram assassinadas em 65 países. O Brasil foi responsável pela morte de 802 delas.

Samara Braga, que foi a primeira candidata trans da história à Prefeitura de Alagoinhas (BA), é um exemplo do quão difícil é viver nesta condição no Brasil. Aceitou sua identidade de gênero somente aos 28 anos. Depois disso, sofreu uma agressão na parada LGBT de Salvador e não conseguiu mais nenhum emprego com carteira assinada.

Ainda assim, pode-se dizer que teve muita sorte: vive de maneira estável com o marido em uma casa própria já aos 33 anos. A expectativa de vida média para a população transgênero no Brasil é de 35 anos - a da população geral é de 74,9 anos.

Transgênero tem causa biológica? 

Para o psiquiatra Alexandre Saadeh, coordenador do Ambulatório de Transtornos de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, há bases biológicas que indicam tendências da condição transgênero desde a primeira infância. “Baseado em pesquisas com boas metodologias, temos boas evidências de bases biológicas para a transexualidade. Isso ajuda a entender por que crianças pequenas de três a quatro anos de idade já apresentam essa questão”, explica.

Em 2008, um grande estudo da Prince Henry's Institute of Medical Research, em Melbourne, na Austrália, trouxe resultados relevantes para esta conclusão. A pesquisa acompanhou 258 indivíduos, sendo 112 transexuais que nasceram biologicamente masculinos, e constatou que o DNA dos trans apresentou gene receptor de andrógeno mais longo. Assim, os hormônios de características femininas, como o estrogênio, se apresentariam com mais eficiência que os masculinos, caso da testosterona.

Pais trans geram filhos trans?

“Alguns estudos dizem que pais trans têm mais tendência a terem filhos também trans ou gays. Mas este tipo de pesquisa genética não tem representatividade, não podemos comprovar isso ainda”, analisa Amanda Athayde, diretora do Departamento de Endocrinologia Feminina e Andrologia da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia. Para ela, as pesquisas podem até estar apontando indícios de origem biológica, mas ainda não é possível cravar uma conclusão.

“Na abordagem psicológica, tem gente que segue a compreensão da causa genética e outros que tratam como espírito do tempo [momento histórico]”, esclarece o psicólogo Rafael Cossi, autor do livro Corpo em Obra. “As abordagens são muitas. Há linhas que trabalham com a hipótese de que transgêneros existem desde o Egito antigo e outras que afirmam que a condição só apareceu a partir do século 18”, complementa.

Transgênero é uma patologia? 

Para a maioria da comunidade científica, não, não é uma patologia. Não há um consenso completo entre médicos e psicólogos, mas as linhas de trabalho mais contemporâneas e respeitadas entre os pesquisadores do tema entendem que não se deve pensar o transgênero como uma situação às margens da normalidade.

“Não se deve estabelecer o conceito de normalidade para comportamento de gênero ou sexual”, recomenda o psicólogo Rafael Cossi. No universo trans, inclusive, há uma variedade imensa de identidades de gênero: há indivíduos que desejam a troca de aparelho genital, há aqueles que convivem bem com seu órgão sexual e outras diversas expressões de sexualidade.

Embora não seja entendida como uma doença, a condição transgênero precisa ser vista como um ponto de atenção, do ponto de vista médico, psicológico e jurídico. “Hoje, não se considera a transexualidade uma doença, mas há a necessidade de diagnóstico médico para que seja feita qualquer intervenção. Não é uma doença, mas uma variação, uma condição”, explica o médico Alexandre Saadeh.

A falta de identidade com o gênero biológico gera, contudo, consequências para o desenvolvimento do indivíduo desde os primeiros sinais de transexualidade. O processo de aceitação de seu corpo e de sua realidade perante ao mundo é bastante complexo e pode gerar traumas psicológicos, e eventuais intervenções no corpo podem resultar em problemas fisiológicos.

Cuidados que vêm do Estado

O advogado ativista dos direitos LGBT Thales Coimbra explica que, dentro da própria comunidade trans, afirmar a condição como patologia é controverso. “Muitas pautas e avanços só foram possíveis graças a essa compreensão, que obriga o Estado a oferecer amparo médico, hormonal e psicológico”, explica. “Há a necessidade de acompanhamento, afinal essa população passa por uma série de traumas sociais”.

Rafael Cossi reforça a tese. “Acredito que precisa ser pensado como doença, assim o Estado atende essas pessoas. Despatologizar isso pode ser perigoso, porque pode tirar o tratamento do alcance do SUS”, alerta.

Transgênero na psicologia

A palavra “gênero” só passou a ter relevância a partir da luta do movimento feminista após a Segunda Guerra Mundial, como forma de distinguir sexo biológico e condição social. A popularização do termo, sobretudo a partir dos anos 1960, ganhou força nas ciências humanas e naturais. Em 1968, o psiquiatra norte-americano Robert Stoller estabeleceu pela primeira vez o conceito de transgênero.

A figura mais popular da psicologia, Sigmund Freud, pouco tratou da questão da identidade de gênero. A única citação que faz não chega sequer a tratar do tema em si, mas de um desejo de um homem em se vestir como uma mulher no famoso Caso Schreber, diagnosticado como esquizofrênico.

Dentre os grandes nomes da psicologia, a abordagem mais problemática da questão trans é do francês Jacques Lacan, que comenta o trabalho de Stoller sobre o conceito da foraclusão. Em outros termos: para Lacan, a transexualidade é uma expressão de uma fase psicótica. “Lacanianos atrelam transexualidade à psicose, e é um problema, porque as pessoas veem isso como uma questão pejorativa”, explica Rafael. “Esta teoria é um ponto problemático, já se avançou muito para além disso”.

O processo de transformação

Cada pessoa trans tem seu próprio tempo de compreensão de sua identidade e de se aceitar como tal. A aceitação, inclusive, é um dos pontos mais delicados do processo. “É comum haver um auto-preconceito. Pessoas transexuais muitas vezes se veem como monstros”, conta Alexandre Saadeh.

Samara relata que seu processo de transformação foi tardio. Em seu caso, viveu a adolescência em Salvador como um jovem gay, de forma escondida. Assumiu-se como homem homossexual ao mudar para Alagoinhas e cursar a universidade. “Fui criada acreditando que tudo era pecado, que era tudo errado, minha sexualidade, minha identidade. Até para me aceitar era muito difícil, mais ainda para meus pais”, conta.

Faltava, ainda, se completar na condição de mulher. Passou por uma transição gradual. Primeiro, começou a usar roupas femininas e maquiagem. Depois, iniciou um procedimento de hormonização, ou seja, uso de hormônios femininos que modificam o corpo: reduzem pelos, aumentam quadril e mamas, entre outros efeitos.

Tratamento sem acompanhamento médico 

A grande maioria das pessoas trans no Brasil realiza seu tratamento de adequação de gênero fora do sistema de saúde. Assim como Samara, muitas mulheres trans tomam hormônios sem qualquer supervisão médica. Pior, muitas delas passam por cirurgias de implantação de próteses de silicone de baixa qualidade e sofrem deformações e infecções severas.

“Há alguns que não suportam o corpo e o órgão genital. Para eles ou elas, é urgente fazer a mudança de sexo. Injetam hormônios ou silicone e até viajam para a Tailândia fazer a cirurgia de troca genital a baixo preço”, relata Rafael Cossi. No Brasil, esse procedimento cirúrgico pode demorar até 12 anos para ser feito pelo SUS. Na rede privada, custa mais de R$ 40.000,00.

Tratamento via SUS

O primeiro passo de quem pretende fazer o tratamento gratuito via Sistema Único de Saúde é ir a uma unidade de saúde pública. Assim que chega, a pessoa recebe um agendamento para passar por consulta com psicólogo e psiquiatra que avaliam se apresenta, de fato, características transgênero. Caso o parecer seja positivo, começa o acompanhamento formal de um psicólogo fornecido pelo Estado e também a administração de hormônios.

O problema do processo é a lentidão e a burocracia: a primeira consulta pode levar até 90 dias para ser marcada e são necessários no mínimo dois anos até receberem o laudo final, que confirma (ou não) a necessidade de uma cirurgia de mudança de sexo.

A endocrinologista Amanda Athayde explica como o tratamento hormonal é feito. “Após a equipe de consulta mental confirmar os traços de transexualidade que começamos o procedimento. Como são majoritariamente homens, receita-se um anti hormônio, que diminui a quantidade de substâncias masculinas. Chamamos de anti-androgênicas e são administradas via oral ou injetável”, explica. Esta etapa transforma características físicas masculinas, como atrofia testicular e diminuição de ereções.

“Então coloca-se quantidade de hormônios femininos semelhantes à da mulher, caso do estrogênio, de uso oral ou em gel. Isso afina a pele e redistribui a gordura no corpo com sinais femininos, no quadril e na mama”, conclui.

Os primeiros sinais de mudança no corpo surgem após seis meses de tratamento. “A vivência de mudanças corporais é fundamental para o bem-estar da população transexual”, afirma Saadeh.

Transgênero e a sociedade

O preconceito contra a comunidade trans não é novidade. Mas ainda se fala muito pouco sobre seus efeitos. A falta de aceitação do corpo biológico, a confusão hormonal causada pelo tratamento informal e, principalmente, a não-aceitação social são os principais responsáveis pela depressão que atinge até 60% das pessoas trans no mundo todo.

“Sempre trabalhei, mas desde que me transformei em Samara, nunca mais tive emprego de carteira assinada. Vivo de pequenos trabalhos, como cabeleireira, por exemplo, e da renda de meu marido”, relata a ex-candidata à prefeita, cuja formação em Biologia foi interrompida na metade do curso.

Ela não é a única. De acordo com levantamento da Associação Nacional de Travestis e Transexuais, a falta de oportunidades de emprego é tanta que 90% da população trans acaba na prostituição, o que aumenta o risco de contrair HIV em 50%. A falta de aceitação está presente também nas escolas: 82% abandonam o Ensino Médio antes de concluí-lo.

Direito trans

“Hoje não há nenhuma lei específica para a população trans em relação a direitos e proteção. Existem somente normas administrativas, que orientam o tratamento deles e delas em órgãos públicos, como escolas, hospitais, transportes”, relata Thales.

“A pauta principal atualmente é a questão da documentação”, conta o advogado. Ele explica que são usados dois argumentos para agir juridicamente em relação ao nome. Um deles é a alegação de nome constrangedor, afinal a identidade psico-social não está representado em seu documento. Outro é a adoção de apelido público notório, que é a aplicação do nome social.

Desde 2016, o decreto federal nº 8.727 exige que toda população trans seja reconhecida por seu nome social. Estados como São Paulo e Bahia também já aprovaram medidas semelhantes, assim como municípios também podem aplicar este tipo de norma.

É um avanço, mas está longe de ser o suficiente. A comunidade LGBT trabalha desde 2009 para que a Lei João Nery (nº 5.002) seja aprovada no Congresso Federal. Trata-se de uma proposta para que haja livre reconhecimento de gênero e que a mudança de nome não precise passar por ação judicial ou crivo médico. Aguarda-se também o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.275 no Supremo Tribunal Federal (STF), que autoriza a mudança de nome sem a necessidade da cirurgia de confirmação de sexo.

Operação era crime

Até 1997, um médico que operasse a mudança de sexo poderia ser indiciado pelo Ministério Público por crime de lesão corporal e mutilação. O caso mais famoso é do médico Roberto Farina, que chegou a ser condenado a três anos de prisão em 1978, antes do julgamento final, que o declarou inocente.

Isso só mudou quando o Conselho Federal de Medicina, via resolução 1.482, fixou a interpretação de normalidade para a cirurgia de mudança de sexo.

Dez anos depois, uma ação civil pública condenou o Ministério da Saúde a oferecer obrigatoriamente o serviço de transgenitação de maneira gratuita. O atual modelo foi instituído na Portaria 2.803, em 2013, e já impactou mais de 10 mil pessoas, segundo o Ministério.

Cidadania trans

Foi apenas na eleição para prefeituras em 2016 que mulheres transgênero se candidataram pela primeira vez a cargos executivos na história da democracia brasileira. Além de Samara Braga em Alagoinhas, Thífany Félix concorreu à prefeitura de Caraguatatuba (SP); ambas pelo PSOL.

O resultado nas urnas foi modesto: respectivamente, 269 (0,36% do total) e 394 (0.67% do total) votos para Samara e Thífany. “Começamos a nossa luta e comemorei cada candidatura, e independente do resultado das urnas, já somos vitoriosas. Somos capazes de competir de igual para igual com eles”, comemora Samara.

Para o legislativo, o número de candidatos e candidatas trans subiu de 31, em 2012, para 84, no ano passado. Nas capitais, Indianara Siqueira, Cristal López e Léo Kret qualificaram-se como suplentes, respectivamente, no Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Salvador. Em todo Brasil, nove mulheres trans foram eleitas vereadoras.

Muitas delas, contudo, tiveram problemas com o Tribunal Superior Eleitoral. Descumprindo a norma administrativa federal, o TSE exibiu em seu site as candidatas com seus nomes de registro, e não seus nomes sociais. “Eu me senti deslegitimada como mulher”, lamenta Samara.

Transfobia

“A transfobia não é crime específico, é preciso usar lei genérica. Enquadramos em lesões corporais ou injúria, sem agravante por ser trans. Existia o Projeto de Lei de criminalizar a homofobia que foi arquivado no Congresso Nacional e no Senado para sempre”, explica Thales.

Espera-se que com a eventual aprovação pelo STF da ADO (Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão) 26, LGBTfobia (ações discriminatórias contra qualquer indivíduo motivado por opção sexual) seja reconhecida como agravante a qualquer crime, da mesma forma como o racismo.

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