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Quem é o brasileiro que pode ganhar Nobel por relacionar amamentação e QI?

Publicado 11 Abr 2017 – 06:00 AM EDT | Atualizado 16 Mar 2018 – 10:30 AM EDT
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O trabalho de mais de três décadas do epidemiologista Cesar Victora sobre aleitamento materno rendeu um reconhecimento inédito à ciência brasileira: o pesquisador recebeu o Prêmio Gairdner, um dos mais importantes na área de ciências da saúde. Entregue anualmente em Toronto, no Canadá, o Gairdner é o principal indicador ao Prêmio Nobel.

O professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) foi premiado na categoria Saúde Global graças ao trabalho inédito que associou a relação entre aleitamento materno e aumento nos níveis de QI, escolaridade e renda aos 30 anos. O artigo “Associação entre aleitamento e inteligência, alcance educacional e renda aos 30 anos de idade: um estudo prospectivo de grupo de nascimento no Brasil [tradução livre]" foi publicado em março de 2015 na revista The Lancet Global Health.

“Para mim foi uma surpresa receber este prêmio. Creio que fui o primeiro pesquisador de um país de renda média ou baixa a ser premiado, o que me deixa particularmente feliz”, comemora Victora, que além de sua atuação na UFPel, ocupa posições nas universidades de Harvard, Oxford, Johns Hopkins e Londres.

Amamentação e inteligência: o que dizem os estudos de Victora

Os resultados do estudo de Victora são bastante conclusivos a respeito da relação entre aleitamento materno e nível de QI, escolaridade e renda: quanto mais longo o período de amamentação na infância, maiores são os índices aos 30 anos. É o primeiro trabalho a estabelecer uma relação de causa e consequência entre amamentação e esses fatores.

No artigo, Victora aponta que as crianças amamentadas por pelo menos um ano registram, aos 30 anos de idade: quatro pontos a mais no nível de QI (cerca de 30% acima da média); 0,9 ano a mais de escolaridade (cerca de 25% acima da média); e renda mensal R$ 349 superior (cerca de 30% acima da média).

“Há vários mecanismos pelos quais o leite humano pode melhorar a inteligência. O mais conhecido é a ação dos ácidos graxos insaturados de cadeia longa, que são essenciais para o crescimento do cérebro. Cerca de 70 a 80% do cérebro se forma nestes primeiros dois anos de vida”, explica o pesquisador.

A pesquisa começou em 1982, quando Cesar Victora liderou o trabalho de coleta de informações de 5.914 recém-nascidos na cidade de Pelotas. Entre 2012 e 2013, parte deste montante foi reavaliado: aos 30 anos, 3.493 dos pesquisados tiveram seus dados analisados para a conclusão do projeto, que levou em conta também outros fatores, como renda e escolaridade familiar.

Trajetória do pesquisador

“Fui médico comunitário em favelas de Porto Alegre e depois em Pelotas, desde 1977. Sempre gostei de trabalhar com crianças e me angustiava vê-las consultando repetidamente com subnutrição, diarreia e outras infecções. À época, o aleitamento materno no Brasil tinha duração mediana de três meses”, relata o pesquisador.

Desde então, dedicou seu trabalho a compreender a relação direta entre amamentação exclusiva e prevenção da mortalidade infantil. Em 1987 publicou seu primeiro estudo sobre o tema: revelou que o aleitamento exclusivo até os seis meses reduzia em 14 vezes o risco de óbito por diarreia e em 3,6 vezes o risco de morte por infecções respiratórias.

“O aleitamento materno reduz a mortalidade infantil por meio de três mecanismos: suas propriedades imunológicas protegem contra infecções; é estéril em relação a contaminações, como pode acontecer com a mamadeira; e promove estado nutricional ideal para a criança pequena”, esclarece o epidemiologista.

Seu trabalho serviu de base para agências internacionais, como a Organização Mundial da Saúde e a Unicef passarem a recomendar o aleitamento exclusivo durante os primeiros seis meses de vida em políticas adotadas em mais de 140 países.

Em 2006, liderou estudo com mais de 11 mil crianças monitoradas do nascimento até a vida adulta no qual recomenda que intervenções nutricionais devem priorizar os primeiros mil dias, ou seja, do início da gestação até os dois anos. Este trabalho baseou a campanha internacional 1.000 Days em países de renda média e baixa.

Nobel para o Brasil?

O Prêmio Gairdner, além de ser um dos mais importantes do mundo, é também o principal indicador do Nobel. Anualmente, condecora somente sete cientistas de todo planeta; desde a primeira edição, foram cerca de 360 premiados - e Victora foi o primeiro brasileiro a realizar tal feito. Deste total, 84 já receberam o Nobel de Medicina ou de Fisiologia.

Victora, contudo, não se anima com o retrospecto positivo dos vencedores do Gairdner. “Tradicionalmente, o Nobel premia alguma descoberta na ciência básica, como um remédio ou uma vacina. Honestamente, não creio que o tema de minha pesquisa vá ser contemplado com um Nobel”, analisa.

Para o pesquisador, o prêmio é também resultado dos investimentos que a ciência brasileira recebeu. “Houve um grande crescimento da ciência brasileira nos últimas duas ou três décadas, que tiveram papel decisivo na criação de uma grande comunidade científica dentro da saúde coletiva. Acho que agora está começando a aparecer esse reconhecimento internacional”, mas preocupa-se com o futuro, após os cortes que a área da ciência e tecnologia sofreu.

“Uma questão muito presente é a dos cortes orçamentários para saúde e educação. A medida que limita o teto dos gastos é um entrave. Em todo o mundo, os gastos com saúde aumentam mais que a inflação. Comparativamente com outros países, o Brasil investe um percentual baixo do PIB. É menor do que a média dos outros países”.

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