null: nullpx
fb_ia-Mulher

Da favela à universidade: Mirna conseguiu, após ouvir que “não tinha cara de médica”

Publicado 19 Jul 2016 – 02:30 PM EDT | Atualizado 14 Mar 2018 – 09:30 AM EDT
Compartilhar

“Quando você mora na favela, é mulher preta, e você quer chegar num determinado lugar, você precisa planejar, porque senão você perde muito tempo batendo cabeça, e a gente não tem nem tempo, nem dinheiro, para ficar na experimentação”.

Este é o trecho inicial do depoimento da estudante do segundo ano de Medicina da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Mirna Moreira, de 22 anos, à página do Facebook Boca de Favela. Mulher, negra e da favela, Mirna traduz em seu relato o “abismo social”, como ela mesma define, que existe entre o Complexo de Lins, na comunidade do Engenho Novo, onde mora, e a sala de aula. 

Em seu relato, que viralizou nas redes sociais e foi reportado em diversos veículos de comunicação, Mirna é uma porta-voz da representatividade da mulher negra, já que é aluna de um dos cursos mais elitistas do País. Levantamento divulgado em 2013 pelo Uol mostra que apenas 2,66% dos formandos eram negros

Nós conversamos com a jovem sobre sua história, as barreiras sociais que precisou enfrentar – ela ouviu que “não tinha cara de médica” – e as dificuldades de acesso ao ensino superior no Brasil. Apesar de ser uma personagem de um enredo de superação, este é um depoimento de quem, infelizmente, ainda é exceção à regra.

Texto de aluna negra da UERJ 

Por trás de um relato emocionante e forte, se abre o abismo a que Mirna se refere. A dificuldade de acesso à Educação de qualidade é um problema enfrentado desde o início do período escolar pela minoria negra, a “mais populosa” da sociedade, já que mais da metade do Brasil se declara negra ou parda.

Creches e escolas públicas são espaços de dificuldades recorrentes, como superlotação de classes, pouco incentivo aos professores e baixo rendimento de alunos. A desigualdade social impacta diretamente na formação dessas crianças e jovens e é comum que o acesso às escolas particulares esteja restrito àqueles que conseguem pagar.

Resultado: todos esses privilégios sociais os capacitam melhor para enfrentar os vestibulares mais concorridos do País, como Medicina. 

Apesar de os negros serem, portanto, a maioria da população brasileira, eles não chegam nem à metade (45,5%) dos universitários de 18 a 24 anos, segundo dados do IBGE de 2014. O número aumentou em comparação a 2004, quando eram 16,7%, mas há pouco o que comemorar.

Fato é que, mesmo com esta tendência de democratização no ensino superior, estudantes brancos e da parcela mais rica da população ainda preenchem a maioria das vagas nas faculdades.

Para ter acesso à vaga, Mirna tentou o vestibular por três anos, e ingressou pelo sistema de cotas, um método de reparação das disparidades históricas sociais. 

“A relação de candidato/vaga era sempre apavorante e, apesar de eu ter estudado em escolas particulares com bolsa de estudos, via pessoas que frequentavam escolas melhores concorrendo. Então, fiz curso preparatório por três anos e entrei na UERJ”.

Em um dos trechos mais emocionantes de seu relato, ela conta como uma menina que mora no bairro dela se espantou quando viu que elas pertenciam à mesma realidade e sobre sua reafirmação ao manter os cabelos crespos e a estética negra. 

“Não sei se o senso crítico é despertado em todas as pessoas, para pensarem em quantos professores, quantos médicos negros tiveram na vida; mas, eu posso ter sido o primeiro exemplo dessa menina que me viu descer na comunidade com ela”. Por isso, ela ressalta a importância do seu posicionamento dentro e fora da faculdade:

"O meu maior acerto foi ter assumido minha estética enquanto mulher negra antes de entrar nesse espaço da universidade. Eu entendi que é muito importante estar ali porque existe a questão da representatividade, que se estende para fora da academia também. Quando eu visto meu jaleco branco e subo o Morro dos Macacos representando a instituição UERJ, como fiz em uma ação sobre sexualidade na adolescência numa escola pública, e as meninas negras dessa escola pedem para tirar fotos comigo, elogiam meu cabelo crespo, e de alguma forma me veem como referência, eu só tenho mais certeza disso. 

No dia dessa ação na escola eu voltei no mesmo ônibus que uma aluna, e quando eu desci no mesmo ponto que ela, aqui no Complexo, ela perguntou: o que você tá fazendo aqui?

Ela não esperava que eu descesse aqui na favela. Eu chorei muito. Isso me marcou demais, até porque eu nunca tive uma representação física e próxima que eu pudesse me espelhar nesse campo profissional, essa mulher, negra, médica. Sabe?”.

E continua:

“Por isso, principalmente nos espaços acadêmicos, eu faço questão de afirmar que sou do Complexo do Lins. Esse lugar faz parte da minha identidade. Sei da onde eu vim, quem me ajudou a chegar até aqui, e não foi nenhum médico de formação, foi minha mãe que trabalhou como diarista por muitos anos, meu pai que já trabalhou como pedreiro, e que sempre priorizaram meus estudos. Eu sei quem são os pretos que construíram a base pra que hoje eu esteja aqui hoje”.

Abismo social nas universidades 

Segundo Mirna, é no dia a dia dentro da faculdade que transparece um problema social que o Brasil precisa debater cada vez mais: o racismo. Velado ou institucionalizado, o preconceito dificulta uma experiência igualitária e justa entre brancos e negros.

"A dificuldade de acesso entre onde eu moro e a UERJ não é de proximidade física, o que tem de dificuldade é o abismo social. Eu não conheço mais ninguém que more no Complexo do Lins e estude na UERJ, nem em outros cursos além de Medicina”, comenta.

“Poucos negros são médicos. É só ver um hospital público: são atendidos muitos negros, mas poucos são os que atendem”, explica, destacando que isso se reflete ainda no curso de Medicina. “É um curso elitista, então causa incômodo porque nós estamos entrando”.

O curso, segundo Mirna, também constrói uma identidade que desvaloriza o trabalho da mulher. “É um curso machista também, porque se fala que o homem tem mais precisão e que Medicina não é coisa de mulher”. 

Parece que o jogo virou, não é mesmo?

Leia o relato completo:

"Quando você mora na favela, é mulher preta, e você quer chegar num determinado lugar, você precisa planejar, porque se não você perde muito tempo batendo cabeça, e a gente não tem nem tempo, nem dinheiro, para ficar na experimentação.

Lembro que quando me perguntavam o que eu queria cursar e eu falava medicina, tinha gente que virava e falava: 'ah, mas você quer isso mesmo? Você não tem cara de médica'. Uma vez numa aula no pré vestibular, um professor entrou em algum tema de redação, que eu não lembro qual foi, e falou: 'olha pro lado e me diz quantos negros tem nessa sala. Foi aquele momento que todos os olhares da sala se viraram pra mim'.

O meu maior acerto foi ter assumido minha estética enquanto mulher negra antes de entrar nesse espaço da universidade, eu entendi que é muito importante estar ali porque existe a questão da representatividade, que se estende para fora da academia também.

Quando eu visto meu jaleco branco e subo o Morro dos Macacos representando a instituição UERJ, como fiz em uma ação sobre sexualidade na adolescência numa escola pública, e as meninas negras dessa escola pedem para tirar fotos comigo, elogiam meu cabelo crespo, e de alguma forma me veem como referência, eu só tenho mais certeza disso. 

No dia dessa ação na escola eu voltei no mesmo ônibus que uma aluna, e quando eu desci no mesmo ponto que ela aqui no Complexo, ela perguntou: o que você tá fazendo aqui?

Ela não esperava que eu descesse aqui na favela. Eu chorei muito. Isso me marcou demais, até porque eu nunca tive uma representação física e próxima que eu pudesse me espelhar nesse campo profissional, essa mulher, negra, médica. Sabe?

Por isso, principalmente nos espaços acadêmicos, eu faço questão de afirmar que sou do Complexo do Lins. Esse lugar faz parte da minha identidade. Sei da onde eu vim, quem me ajudou a chegar até aqui, e não foi nenhum médico de formação, foi minha mãe que trabalhou como diarista por muitos anos, meu pai que já trabalhou como pedreiro, e que sempre priorizaram meus estudos. Eu sei quem são os pretos que construíram a base pra que hoje eu esteja aqui hoje".

Compartilhar

Mais conteúdo de interesse