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Realismo fantástico e marketing social: a fórmula (quase) perfeita de Gloria Perez

Publicado 6 Jul 2017 – 06:00 AM EDT | Atualizado 15 Mar 2018 – 04:58 PM EDT
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Poucos autores de novelas são tão característicos como Gloria Perez. Na Globo desde 1979, ela carrega no currículo tramas memoráveis, vencedoras de prêmios e que renderam uma enorme audiência para a emissora. O último sucesso da autora foi “A Força do Querer”, que se tornou a melhor audiência do horário das 21h desde "Avenida Brasil" (2012).

Caso não tenha percebido ainda, Gloria utiliza uma fórmula praticamente pronta na construção de suas histórias. Misturando temas atuais, polêmicas relevantes e personagens femininas fortes, ela nunca teve medo de tocar em certos assuntos, fazendo de suas novelas um grande veículo de conscientização da sociedade.

Embora acabe repetindo alguns clichês, os enredos são sempre singulares. Mas como isso acaba dando tão certo na televisão?

Novelas de Gloria Perez: coragem e melodrama

Atualmente, a novela “A Força do Querer” desperta discussões importantes sobre alguns temas, como identidade de gênero, vício em jogos e até o desafio da “Baleia Azul”, popularmente conhecido como jogo do suicídio, que veio à tona recentemente. Não é de hoje que as tramas de Gloria têm esse teor social; em 1995, “Barriga de Aluguel” falou sobre fertilização in vitro, que ainda não era muito conhecido - ou bem visto - pelas pessoas.

A autora não teme represálias do público, e fala sobre tabus e assuntos relevantes em todas as suas novelas. No lançamento de “A Força do Querer”, ela afirmou a necessidade de tocar nesses temas: “Falo das coisas que me preocupam. As causas que eu ponho nas minhas novelas são aqueles assuntos em que, no momento, eu queria pensar sobre, e acredito que deveriam ser debatidos”.

Das 12 novelas escritas para a Globo, cada uma teve um foco social específico. “O Clone”, por exemplo, debateu a clonagem humana em 2001, três anos depois da primeira experiência de cópia do DNA de um ser vivo, com a ovelha Dolly. Gloria também chamou a atenção para a imigração ilegal em “América”, no qual a protagonista, Sol (Deborah Secco), tentava passar pela fronteira para os Estados Unidos, em uma época de muitos conflitos na região.

Gloria é adepta do chamado marketing social em suas novelas, que é a apropriação de assuntos relevantes e atuais. No entanto, o grande diferencial é a forma com a qual a autora conta suas histórias, deixando tudo muito claro para o público, sem cair em um didatismo exagerado - como quando retratou a esquizofrenia de Tarso (Bruno Gagliasso), em "Caminho das Índias".

De acordo com Claudino Mayer, doutor em ciência da comunicação pela ECA-USP, esse é o principal trunfo da autora: “Ela dá voz ao personagem como sendo um interlocutor de um público carente, no sentido de informação, no sentido de apuração. E aí que ela prende o telespectador”.

O especialista também destaca o gênero das novelas de Gloria, que é exatamente o que o público quer ver hoje em dia. “Ela trabalha com o melodrama na essência, em que você torce pela mocinha e se emociona. Gloria sabe usar isso como ninguém”.

Em meio a outras culturas, situações de risco ou polêmicas sociais, há sempre um romance central nas tramas da autora e uma protagonista forte, que ganha a empatia do público. O exagero de sentimentos faz com que as histórias se sustentem ao longo da exibição. “A maneira como a Gloria escreve é como se fosse um romance, sentindo na pele o que passam os personagens”, explica Claudino.

Vontades do público: timing certeiro

As principais tramas de Gloria contaram com um pouco de sorte para fazer sucesso. Afinal, a autora entrou em cena no timing perfeito diversas vezes, entregando ao público exatamente o que eles queriam ver no momento. Em “A Força do Querer”, o que também ajudou na boa audiência foi a situação de crise que o Brasil enfrenta atualmente, de acordo com Claudino. “As pessoas estão pedindo romance, histórias que levem ao choro, reflexão. Sem elementos políticos, que não falem da realidade”.

Outro exemplo é “Caminho das Índias”, novela que entrou ao ar em 2009. A trama anterior, “A Favorita”, foi cheia de tensão e disputas morais, com uma densidade que cansou o público. Gloria trouxe uma história com a cultura de outro país, um triângulo amoroso infalível e cenários e figurinos impecáveis. O resultado foi tão bom que rendeu à autora um Emmy Internacional, de Melhor Novela, em 2009.

Apesar do sucesso, o público não deixa de cobrar algumas reviravoltas nas tramas de Gloria, que já sofreram alterações significativas pela vontade popular. Em “Caminho das Índias”, a protagonista Maya (Juliana Paes) deveria ter vivido um grande amor com Bahuan (Márcio Garcia), que seria atrapalhado por Raj (Rodrigo Lombardi), com quem ela estava prometida a se casar.

No entanto, a química entre Maya e Raj foi tanta, que a autora teve que mudar os planos iniciais, diminuindo a participação de Bahuan na trama e deixando o casal junto até o último capítulo. O mesmo aconteceu com “Salve Jorge”, em que Lívia (Claudia Raia) seria a grande vilã, e Morena (Nanda Costa), a mocinha, uma jovem que cai em uma armadilha e é traficada para a Turquia. A baixa audiência acabou dando mais importância para outras personagens, como Jéssica (Carolina Dieckmann) e Wanda (Totia Meireles).

Até hoje, "Salve Jorge" é vista como uma das novelas mais problemáticas de Gloria Perez, já que o casal protagonista Theo (Rodrigo Lombardi) e Morena não engrenou, assim como o jeito caricato da vilã Lívia. Além disso, o elenco inchado virou alvo de críticas, com pontas soltas e personagens desnecessários.

Vivências pessoais da autora

A tão comentada “fórmula” de Gloria Perez é, também, um reflexo de sua própria vida. A autora nasceu no Acre e mudou-se para Brasília com a família quando tinha 15 anos. Na capital federal, iniciou um curso de Direito na faculdade, que não chegou a concluir - em plena Ditadura Militar, ela foi para o Rio de Janeiro, onde formou-se em história.

O convite para entrar no mundo da dramaturgia veio de ninguém menos que Janete Clair, em 1983, quando foi chamada pela lendária escritora a colaborar na trama “Eu Prometo”, da Globo. A autora titular faleceu no meio da novela, e Gloria foi responsável por concluir a história.

Um acontecimento trágico marcou a carreira da autora. Em 1992, durante a própria novela "De Corpo e Alma", a filha de Gloria, Daniella Perez, foi brutalmente assassinada por Guilherme de Pádua. Eles interpretavam um par romântico na trama, e a morte foi motivada por ciúmes da esposa de Pádua na vida real, Paula Thomaz.

Gloria voltou para o trabalho apenas uma semana depois, e desde então, nunca mais parou. Conhecida por sempre escrever sozinha, sem o auxílio de outros autores, ela consegue manter a autenticidade e estilo próprio em suas novelas, do começo ao fim.

“Ela conta histórias de um jeito que preenche lacunas”, explica Claudino, justificando a abordagem que ela dá a assuntos densos. “Gloria percebe uma carência no tema e discute, e essa é a essência do melodrama. São elementos que ela sabe muito bem que atrai público”.

A vida pessoal da autora também fortalece as personagens femininas de suas novelas, que sempre são mais bem construídas que os homens. Só em “A Força do Querer”, são três mulheres no centro da história: Ritinha (Isis Valverde), Jeiza (Juliana Paes) e Bibi (Paolla Oliveira). “A presença feminina é forte e talvez seja até inconsciente para Gloria, e são marcantes porque ela percebe a importância da mulher, que é o centro da cultura brasileira”, aponta o especialista.

Repetições da trama ao elenco

Embora a fórmula de Gloria seja bem construída, ela acaba sendo acusada de repetir a mesma trama, por buscar sempre uma cultura exótica e inserir o marketing social em suas histórias. Até os atores protagonistas já foram os mesmos - Rodrigo Lombardi, por exemplo, teve um papel importante em três tramas da autora.

São clichês necessários, utilizados por todos os grandes autores da dramaturgia. “Cada um tem que usar suas próprias fontes para ter como referências, o que acaba criando um estilo demarcado. Até autores novos acabam trabalhando com o que já aconteceu, o que já deu certo anteriormente”, comenta Claudino.

A própria autora defende o estigma de contar histórias de outras culturas. “Quero contar história de gente. Em todas as minhas novelas sempre quis falar sobre a diversidade porque me incomoda a dificuldade que as pessoas têm de aceitar o diferente. Para mim, não existe cultura exótica, existe o diferente. São muitas maneiras de enxergar e viver o mundo”, explica Gloria ao jornal O Globo, em março de 2017.

Repetir os atores acaba sendo uma carta na manga para a autora. Em “A Força do Querer”, a escolha do elenco foi perfeita para os personagens, algo que já era esperado por Gloria. “Por ela já os conhecer, ela sabe que os atores conseguem colocar o que ela escreve em prática, defendendo os pontos de vista da autora”, aponta Claudino.

O realismo fantástico também mexe com o imaginário do público, que mergulha de cabeça nas culturas e costumes retratados por Gloria. Seja mostrando a comunidade cigana em “Explode Coração”, os árabes em “O Clone”, os imigrantes nos Estados Unidos em “América”, indianos em “Caminho das Índias” ou a Turquia em "Salve Jorge", as tramas desenvolvem uma proximidade com o público brasileiro, por tratar de temas cotidianos, como o amor ou a fé, ou por expandir as próprias fronteiras da dramaturgia de forma natural.

O sucesso de “A Força do Querer”

Depois de cinco anos longe da Globo, Gloria escreveu “A Força do Querer” com o objetivo de renovar a audiência do horário nobre da emissora. Ela mesma assume algumas diferenças na história, que trouxe menos personagens, uma trama mais concisa e, pela primeira vez, a cultura do nosso próprio país, com o elemento folclórico do norte do Brasil.

Os três focos principais - Ritinha, Bibi e Jeiza - concentram quase todos os núcleos da novela, o que tornou o entendimento e a condução do enredo muito mais fáceis para o espectador. Além disso, Gloria se mantém na essência do melodrama, criando personagens de ficção, sem ligação com a realidade.

A grande inovação em “A Força do Querer” não está na história, mas na maneira com a qual ela é contada. “Ela resolve os conflitos de imediato, e dentro disso, o personagem tem objetivos revelados em até dois dias. Isso deixa o público na curiosidade, embora as histórias sejam previsíveis”, analisa Claudino.

Há espaço para o realismo fantástico, na presença de Isis Valverde como sereia, e para o marketing social, na questão de gênero mostrada por Ivana/Ivan (Carol Duarte). Os relacionamentos amorosos, o drama policial da vida de Bibi e até a questão do vício, com Silvana (Lília Cabral), amarraram as pontas da história de um jeito único, contemplando justamente o que as pessoas querem ver na televisão hoje em dia, a mistura de entretenimento e diversão. “Ela está no lugar certo, na hora certa”, conclui o especialista.

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