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cultura do estupro-Mulher

Forma como Justiça trata casos de estupro é correta? Como vítimas são acolhidas?

Publicado 12 Set 2016 – 06:15 PM EDT | Atualizado 14 Mar 2018 – 09:30 AM EDT
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“[…] para abrir pernas e dar o rabo para um cara tu tem maturidade, tu é autossuficiente, e para assumir uma criança tu não tem? […] Tu é menor de idade, se tu fosse maior de 18 eu ia pedir a tua preventiva agora pra tu ir na FASE pra te estuprarem e lá fazer tudo o que fazem com um menor de idade. Porque tu é criminosa. […] Eu vou me esforçar ao máximo pra te por na cadeia. […] Além de matar uma criança tu é mentirosa? Que papelão, hein? […] Agora assim ó, vou me esforçar pra 'te ferrar', pode ter certeza disso. Eu não sou teu amigo”.

Os trechos acima são parte de uma audiência judicial que aconteceu no Rio Grande do Sul e foram proferidos pelo promotor de justiça Theodoro Alexandre da Silva Silveira para uma adolescente de 14 anos, vítima de abusos sexuais e estupro cometidos pelo pai entre 2011 e 2012.

A audiência aconteceu em fevereiro de 2014, na cidade de Júlio de Castilhos, mas os documentos só vieram à tona agora, após um pedido de recurso do indiciado. Os desembargadores que analisaram o processo condenaram a atitude do promotor na ocasião.

O que aconteceu?

No processo, o pai foi acusado de abusar da filha, na época com idade entre 12 e 13 anos, por mais de um ano. O caso só foi denunciado quando a menina engravidou. Após a investigação e abertura do processo, a adolescente teve o aborto autorizado e os exames de DNA comprovaram que o feto era dele.

Foi na continuidade da ação, quando foi ouvida novamente, que a vítima, supostamente pressionada pela família, negou o envolvimento do pai. Foi este o motivo, portanto, de o promotor ter proferido as acusações.

“Nesse cenário, era previsível, até mesmo esperado, que a vítima tentasse uma retratação, pois seu pai era o único provedor da família, situação que preocupava muito sua mãe. Quem conhece o mínimo necessário sobre a dinâmica do abuso sexual sabe que situações como aquelas apresentadas neste processo, quando a vítima, por razões das mais diversas, muda versão para inocentar o abusador, são comuns e até mesmo previsíveis, não tendo nada a ver com seu caráter, coragem ou mesmo sinceridade”, escreveu José Antônio Daltoé Cezar, um dos desembargadores responsáveis pelo caso.

Exposição da adolescente

Em sua fala, além de expor e humilhar a adolescente, o promotor ainda fez insinuações de que só não decretou sua prisão porque ela era menor de idade, mas que iria se esforçar para isso acontecer, para que ela fosse estuprada. “Se tu fosse maior de 18 eu ia pedir a tua preventiva agora pra tu ir na FASE pra te estuprarem e lá fazer tudo o que fazem com um menor de idade”, disse em um dos momentos. “Eu vou me esforçar ao máximo pra te por na cadeia”, completou em outro.

Repercussão do caso

O pai, em 2014, ano em que o processo foi julgado, foi condenado a 27 anos de prisão. Mas, foi somente este ano, quando ele entrou com recurso no Tribunal de Justiça do Estado, que os desembargadores da 7º Câmara Criminal tiveram acesso ao caso, se depararam com o registro da fala do promotor e se chocaram.

Agora, os desembargadores pediram a investigação da conduta do promotor na Corregedoria do Ministério Público e a da juíza na Corregedoria-Geral da Justiça, lamentaram a forma como a vítima menor de idade foi recepcionada no Sistema de Justiça e esclareceram que, caso ela queira, pode entrar com ação contra o promotor, que teria agido com dolo (intenção de atingir um fim exclusivamente criminoso para causar dano a outras pessoas) ao humilhá-la quando deveria protegê-la.

“O Promotor de Justiça que atuou na solenidade a tratou como se ela fosse uma criminosa, esquecendo-se que só tinha 14 anos de idade, era vítima de estupro e vivia um drama familiar intenso e estava sozinha em uma audiência. Aliás, a menina necessitava de apoio de quem conhece estes tristes fatos da vida e não de um acusador, pois a função do Promotor de Justiça é de proteção da vítima e, no caso, ao que tudo indica, ele se sentiu ludibriado pela menina, por ter opinado favoravelmente ao aborto e, posteriormente, ela não confirmar a denúncia. O pior de tudo isso é que contou com a anuência da Magistrada, a qual permitiu que ele fosse arrogante, grosseiro e ofensivo com uma adolescente. Um verdadeiro absurdo que necessita providências”, escreveram em relatório.

Outros casos semelhantes

A história choca pela humilhação e exposição a qual a vítima foi submetida e se assemelha ao recente caso do estupro coletivo do Rio de Janeiro. Nele, uma adolescente foi estuprada por vários homens e as imagens foram divulgadas na internet. O primeiro delegado que cuidou do caso desacreditou o depoimento da vítima e as imagens e chegou a afirmar que não havia estupro.

A situação só mudou quando outra delegada, da Delegacia da Criança e do Adolescente, assumiu o caso. Dra. Cristiana Bento, em coletiva, afirmou que não havia dúvidas em relação ao crime sexual e que a condição ou o comportamento da vítima no momento do ato não deve virar um julgamento moral.

A semelhança dos casos também traz uma reflexão importante. De que maneira o Sistema Judiciário acolhe as vítimas de violência sexual? Como as mulheres são acolhidas e ouvidas quando decidem fazer uma denúncia? Como deveria ser?

Abuso sexual na infância: como é e como deve ser o acolhimento

Como é

As consequências de um abuso sexual na infância são inestimáveis. Mas, para além dos impactos psicológicos causados pela violência, muitas vezes o acolhimento do Sistema Judiciário pode ser outra dificuldade.

Isto porque, como explica Juliana Do Val Ribeiro, coordenadora do Núcleo Especializado de Infância e Juventude da Defensoria Pública de São Paulo, nem sempre a instituição ou a pessoa que vai ouvir a criança pela primeira vez está pronta para acolhê-la de maneira eficiente.

Geralmente, a primeira recepção é na escola ou no conselho tutelar. “Muitas vezes falta qualificação. Os conselheiros e os professores não recebem treinamento, aprimoramento ou cursos”, comenta a profissional.

Mas, o problema não é exclusividade das esferas iniciais. Ele as perpassa e chega até as salas de audiência, resultando em mais constrangimento e traumas para a vítima.

Como deve ser 

Para minimizar o impacto que um profissional mal treinado pode gerar em casos delicados como os de abuso de menores, Juliana diz que uma medida que vem sendo defendida por uma parte do sistema é a prática do depoimento sem danos. “Com essa prática quem passa a escutar a vítima são os psicólogos e os assistentes sociais, e não o juiz, e em um ambiente menos intimidatório do que em uma sala de um tribunal. Isso evita que ela tenha que repetir a mesma história muitas vezes, relembrando as violências”, explica.

É exatamente por acreditar que a escuta precisa ser acolhedora que Juliana diz que a garota do caso do Rio Grande do Sul em nenhum momento poderia ser exposta à agressão verbal e à desqualificação da maneira que foi. “O promotor estava lá para preservar seus direitos. Se tivesse tido uma escuta por uma psicóloga, eventualmente teria sido possível perceber que aquela criança estava desviando as informações por medo”, comenta.

Ana Rita Souza Prata, coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher também da Defensoria Pública de São Paulo, no entanto, discorda da transferência do depoimento fornecido aos juízes e outros cargos da justiça para psicólogas e assistentes sociais. “De fato para ouvir uma criança vítima de violência tem que ter muito cuidado com a escuta, com a linguagem e com o ambiente, mas eu não acho que isso deva ser terceirizado porque se não estamos tirando a responsabilidade do sistema ao invés de capacitar os juízes e outros profissionais”, aponta.

Abuso sexual e estupro de mulheres: semelhanças entre adolescentes e adultas 

O que os dois recentes casos do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul evidenciam é outra grave questão: o julgamento da conduta moral-sexual pelas quais as duas adolescentes foram submetidas - pelo delegado, no primeiro, e pelo promotor, no segundo. “Quando a gente fala de violência sexual contra adolescentes, falamos principalmente de mulheres. Os meninos geralmente só são vítimas na infância e, nessa idade, o atendimento é totalmente diferente”, coloca Ana Rita.

É por isso que, nestes casos, é possível traçar um paralelo com a forma como as mulheres são atendidas quando decidem denunciar um crime sexual. Além de o crime ser semelhante, a forma como uma adolescente e uma mulher adulta é acolhida também é. “Adolescente ou adulta a sua moral é sempre colocada em xeque e a sua verdade é contestada a depender da forma como ela se porta ou se coloca naquele momento, se é digna ou não de confiança”, comenta a defensora.

E ainda mais grave é que este julgamento moral-sexual impacta não só no acolhimento da vítima como também no julgamento do caso. “Existe um estudo que analisou diversas decisões do tribunal relativas a crime de estupro. As pesquisadoras perceberam que todas as decisões levava em consideração a conduta da mulher ou para considerar que era ela digna por ser de família e recatada ou o contrário, que seu depoimento não merecia confiança, porque supostamente seu comportamento sexual era considerado fora do padrão estabelecido. Isso não é achismo, a pesquisa deixa claro”, conta a advogada.

Como resultado, além de reforçar a ideia equivocada de que o comportamento de uma mulher interfere no seu merecimento ou não de respeito, este tipo de conduta ainda afasta as mulheres do Sistema Judiciário e mostra que onde elas deveriam ser protegidas, na verdade podem ser julgadas e descreditadas.

Por que as mulheres não denunciam a violência sexual e doméstica? 

O Brasil tem, em média, 47 mil casos de estupro registrados por ano. Os números, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, no entanto, são subnotificados em 90%. Estima-se, portanto, que o real seja a média de 470 mil, resultando em um estupro a cada minuto.

Para Ana Rita, é exatamente por muitas vezes ser responsabilizada pelo crime do qual foi vítima que as mulheres deixam de procurar delegacias e efetivar as denúncias. “O que se percebe é que uma vez acionando o sistema de justiça, a vítima passa a ser objeto dele e ninguém mais se questiona o que ela está sentindo ou o motivo de ter mudado sua versão, exatamente como aconteceu com a adolescente, que só foi vista como um objeto de prova, trazendo prejuízo para o objetivo daquele processo que era condenar o autor dos fatos. Então, por que a violência sexual é um crime com subnotificação? Por que é isso o que acontece com quem denuncia”, explicita Ana Rita.

“Infelizmente é como se a mulher precisasse provar que não era merecedora daquela violência em vez do homem provar que não cometeu o crime. Fica parecendo que, a depender das características do caso, de alguma forma o crime seja justificável”, acrescenta a promotora de justiça Gabriela Mansur, coordenadora do Núcleo de Combate à Violência Doméstica do Ministério Público de São Paulo.

De acordo com a promotora, a grave consequência disso, que gera na mulher receio e medo de procurar auxílio na justiça, é o alto índice de feminicídio.

O Brasil ocupa a quinta posição no ranking dos países que mais têm homicídios femininos – são 13 casos por dia. “Na imensa maioria desses casos, o agressor é conhecido e antes houve estupro, ainda antes houve violência física, psicológica, moral. Se não mudarmos o comportamento da justiça, vamos continuar afastando essas mulheres e vamos cada vez mais perder vítimas”, alerta a promotora.

Violência contra a mulher

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