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O que foi o Holocausto brasileiro: 60 mil mortes dentro de um hospital psiquiátrico

Publicado 30 Jan 2017 – 02:45 PM EST | Atualizado 13 Mar 2018 – 04:42 PM EDT
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Um campo de concentração travestido de hospital psiquiátrico, que funcionou na cidade de Barbacena, em Minas Gerais, trouxe tortura, fome e frio às pessoas que passaram por lá por pelo menos 50 anos. Neste período, 60 mil brasileiros morreram, dentro de uma estrutura de horror.

Fundado em 1903, o Hospital Colônia de Barbacena foi projetado para ser um manicômio; ou seja, um ambiente que recebia os desajustados sociais, os “loucos”.

“Ele foi construído para ser um hospício, pois, naquela época não existia tratamento psiquiátrico. Louco era como leproso”, conta em entrevista ao Vix o jornalista mineiro Hiram Firmino, repórter que entrou no Hospital e denunciou os maus-tratos dos internos, em 1979, ao lado do cineasta Helvécio Ratton. 

Foi a partir da década de 30, entretanto, que o local, que deveria ser uma unidade de cuidados para saúde mental, se transformou em um depósito de pessoas.

Todos os dias, Barbacena recebia os chamados “trens de doido”, com vagões preenchidos por homens, mulheres e crianças que, sem saber, estavam sendo jogados nos porões da loucura.

Os internos também podiam chegar de viatura da polícia, quando a solicitação vinha de um delegado, ou de carro, deixados pelas famílias. 

“Setenta e cinco por cento das pessoas que morreram em Barbacena eram negros e pobres”, destaca Hiram. “A instituição também admitia a menina grávida do interior, o alcoólatra e os rejeitados”.

Uma rápida análise no perfil dos internos do Hospital é uma prova disto. Isto porque 70% dos internos não tinham sequer algum diagnóstico de doença mental

Isso significa que, de fato, a exclusão dos indesejáveis se cumpria sem ressalvas: mendigos, homossexuais, desafetos, crianças órfãs, meninas grávidas, alcoólatras, prostitutas, epilépticos, esposas traídas e, historicamente, negros e pobres, chegavam à Barbacena.

Por dentro do Hospital: condições desumanas

Jogados, sem alimentação adequada, sem cuidados médicos ou atividades de ocupação, eles viviam em condições desumanas. Há relatos de que as camas, na verdade, era capim jogado no chão. Nem sempre eles estavam vestidos.

Em momentos de superlotação, as coisas se agravavam: pessoas deitadas no chão, nuas, com frio e fome, comiam ratos e fezes, bebiam esgoto ou urina e eram violentados até a morte.

Hiram relata que sentia que as pessoas que trabalhavam no hospital já haviam banalizado o mal; apesar de conviverem com situações tão extremas e violentas, tratavam os episódios com normalidade. 

“Eu vi funcionários dando banho nas pessoas com vassoura, água e sabão, e enxaguando como mangueira. Tive a impressão que elas estavam fazendo o que eram obrigadas a fazer e não tinham consciência do mal”.

Ao todo, 60 mil pessoas morreram no Hospital (16 pessoas morriam por dia, por doenças, eletrochoque sem anestesia, frio ou fome). Seus corpos estão em um cemitério desativado nos anos 80, construído anexo ao Hospital.  “Viviam como bichos”, decreta o jornalista Hiram Firmino.

Se já não bastasse todo o sofrimento: pelo menos 1.800 corpos foram vendidos para faculdades de medicina do País.

Quando a venda de cadáveres deixou de ter demanda, a estratégia também mudou: os corpos eram decompostos por ácidos dentro do hospital, para a comercialização das ossadas.

“Holocausto” brasileiro: origem e razão do nome

Este é o título do livro (2013) e do mais recente documentário (2016) da jornalista mineira Daniela Arbex, dirigido ao lado de Armando Mendz, e dá a dimensão deste capítulo cruel da história do tratamento psiquiátrico no Brasil.

Foi quando começou a fazer uma série de matérias para o jornal Tribuna de Minas, em 2011, que a jornalista mineira Daniela Arbex classificou o episódio como Holocausto Brasileiro. 

Apesar de os números entre as vítimas do nazismo e do caso brasileiro serem bem distantes, o projeto de “extermínio da escória” se repetiu, infelizmente, nos dois momentos. 

A investigação jornalística feita por Daniela, assim, reforça as semelhanças do Holocausto nazista, na Alemanha, com o massacre brasileiro.

O padrão de crueldade se repete desde a forma de chegada das vítimas até tratamento desumano, comum aos campos de concentração e à instituição psiquiátrica.

“Desde a primeira matéria que fiz para o jornal Tribuna de Minas, coloquei o nome Holocausto brasileiro. Não tinha outro nome possível. Não é mesmo número de mortos, mas é a mesma forma que os judeus foram tratados; despachados em vagões de carga, eles chegavam aos campos de concentração e recebiam uniformes, tinhas as cabeças raspadas e eram obrigados a trabalhar”, conta Daniela, em entrevista ao Vix.

“Não tem como enxergar um hospital neste caso”, acrescenta Daniela. “Ele é a nossa vergonha. Nós falamos da Alemanha, onde tem memorial para as vítimas do Holocausto, mas desconhecemos a nossa história. Por isso, o meu trabalho foi apresentar o Brasil aos brasileiros”.

O fim do Holocausto: denúncias e mudanças

Foi só com as denúncias de Hiram, por meio de suas reportagens, e com as imagens captadas pelo cineasta Hevelton Ratton que o Brasil passou a conhecer a triste e violenta história de Barbacena.

Para o profissional, o que se via ali era a banalização do mal. "Somente vendo as imagens feitas por Ratton, foi que caiu a ficha”.

“Eu tinha 27 anos. Assim que entrei no hospital, senti vergonha da minha insegurança, dos meus problemas. Pensei: como posso reclamar da vida, se existem pessoas no chão, vivendo igual bicho?”, comenta. “Eu tentei escrever tudo que estava vendo e, em um primeiro momento, os diretores [da instituição] tiveram uma reação violenta”. 

O jornalista conta que, no final dos anos 70, o próprio meio médico e as autoridades demonstravam revolta contra os métodos praticados dentro do Hospital Colônia.

Visita de psiquiatra 

A visita do psiquiatra italiano Franco Basaglia ao local, em 1979, também representou um forte apoio ao fim dos manicômios, especialmente da Colônia. O reconhecido especialista, fundamental para a história da luta antimanicomial, disse em entrevista coletiva, na ocasião, “estive hoje num campo de concentração nazista. Em lugar nenhum do mundo, presenciei uma tragédia como essa”.

"Ele dizia que os diretores e funcionários do Hospital Colônia faziam o papel de torturadores e carcereiros”, relembra Hiram. 

São de Basaglia, aliás, duas frases que parecem descrever a realidade do manicômio mineiro e a omissão e despreparo do Estado para cuidar das pessoas:

“A psiquiatria, desde seu nascimento, é em si uma técnica altamente repressiva que o Estado sempre usou para oprimir os doentes pobres...” e “o hospício é construído para controlar e reprimir os trabalhadores que perderam a capacidade de responder aos interesses capitalistas de produção”.

 “A partir daí, o Estado e várias instituições ligadas à família começaram a se mexer. Fizemos dois meses de reportagem, porque todo mundo escancarou as situações, dizendo, por exemplo, que havia lugares que escondiam pacientes em casinhas isoladas e relatando outros casos”, comenta Hiram.

A reforma propunha tratar sem excluir; ou seja, estava decretado o fim do Holocausto brasileiro. Ainda em 1980, o hospital passou a ser chamado de Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena (CHPB).

Em 2001, foi promulgada a Lei da Reforma Psiquiátrica (nº 10.216), que prevê a substituição gradual dos leitos psiquiátricos por núcleos de atendimentos, redes de apoio e hospitais-dia.

Nise da Silveira

Vale lembrar que, alguns anos antes, o cuidado psiquiátrico já apontava para uma tendência humanizada no trabalho da psiquiatra alagoana Nise da Silveira. Ela introduziu a pintura como terapia ocupacional e o contato com cachorros e gatos na rotina dos “loucos” do Hospital Pedro II, no Rio de Janeiro. Tudo isso ainda na década de 50. 

Com sensibilidade, Nise levou as pinturas dos pacientes (a quem chamava de clientes) para o mundo. Tinha como preceito que “todo mundo tem um pouco de loucura e gente curada demais é gente chata”. A história, aliás, também ganhou produção cinematográfica: no filme “ Nise – O coração da loucura”, a psiquiatra é interpretada por Gloria Pires. 

O que a violência pode ter causado

A dor silenciosa vivenciada pelos internos da Colônia, considerando que nem a metade tinha diagnóstico de problemas psiquiátricos, foi imensurável (e, certamente, ainda é para os sobreviventes).

A psicanalista Vera Warchavchik, membro do Departamento de Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e colaboradora do Observatório de Saúde Mental, Drogas e Direitos Humanos (OIA), explica que o tipo de tratamento que as pessoas receberam em Barbacena pode, no mínimo, ter agravado traumas pré-existentes.  

“Possivelmente, agravado a dificuldade de sustentar laços sociais, de confiar no outro e nos valores da Cultura”, detalha. 

“Isto porque foram tratados como coisas, sem dignidade ou subjetividade. Para quem já teve dificuldades no encontro e troca com o outro logo no início, com transtornos no processo de construção de identidade, de noção de si e do outro e de assimilação dos valores da cultura, se defrontar com um mundo violento, que os exclui, que retira deles qualquer direito ou razão é, no mínimo, isolar mais esses sujeitos em seu universo particular (a loucura)”.

Situação atual

Fim da invisibilidade

O documentário de Daniela Arbex e de Armando Mendz é uma produção da HBO e estreou no canal de TV Max em novembro de 2016. 

A equipe entrevistou sobreviventes que passaram a vida inteira dentro da instituição e funcionários da Colônia. “Não tive dificuldades de falar com eles, porque contar a história é uma forma de eles passarem a existir”, destaca a jornalista, que aborda temas de direitos humanos há mais de 20 anos.

O documentário foi gravado nos ambientes do antigo Hospital de Barbacena, onde hoje funciona o Hospital Regional de Barbacena, que oferece atendimento geral e de psiquiatria para 700 mil pessoas. De “Cidade dos Loucos”, Barbacena se tornou referência na instalação de residências terapêuticas, para onde muitos internos do hospício foram transferidos. 

Museu da Loucura: para não esquecer

O Museu da Loucura é um equipamento aberto ao público que foi criado em 1996. Ele conta com um acervo que conta a história do Hospital Colônia de Barbacena, com recursos audiovisuais e objetos do manicômio, fotos e documentos, como o uniforme usado pelos internos (acima) e o equipamento de eletrochoque usado nos pacientes (abaixo).

O museu fica na Avenida 14 de agosto, s/n, bairro Floresta, em Barbacena, no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena (CHPB). Mais informações pelo telefone (32) 3339-2625. 

* As cenas fortes que ilustram essa matéria são do documentário “Em nome da razão”, de Hevelton Ratton (veja trailer abaixo), do acervo da Prefeitura de Barbacena e de um trecho do documentário Holocausto Brasileiro, de Daniela Arbex.

Desvendando a mente humana

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