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Povo de Luzia: o que se sabe sobre primeiros brasileiros, que viveram há 11 mil anos

Publicado 3 Abr 2017 – 02:30 PM EDT | Atualizado 16 Mar 2018 – 10:37 AM EDT
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Muito antes de Pedro Álvares Cabral descobrir o Brasil, há 516 anos, habitantes milhares de anos mais antigos chegaram a terras brasileiras: o povo de Luzia.

Eles tinham características bem diferentes dos índios, conviveram com grandes animais da megafauna e pisaram por aqui há mais de 11 mil anos.

Todas essas descobertas foram feitas por uma equipe de pesquisadores e arqueólogos que há décadas investigam os antepassados americanos. O Vix conversou com dois dos principais pesquisadores. Um deles é Walter Neves, arqueólogo e coordenador do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP). O outro, André Strauss, é coordenador das escavações na região de Lagoa Santa do Instituto Max Planck, na Alemanha.

Juntos ou em períodos diferentes, os estudiosos buscavam entender as raízes de onde realmente vieram os primeiros povos que habitaram o Brasil e as Américas. Eles descobriram o que, mais tarde, chamaram de “povo de Luzia”, durante a exploração na região de Lagoa Santa, a 50 km de Belo Horizonte, em Minas Gerais, que teve início nos anos 1980 e continua até hoje, a partir de diferentes projetos.

Lagoa Santa é uma região importante para materiais arqueológicos, por conta de diversos fatores: a densidade de uma população que viveu ali de 7 a 11 mil anos atrás; a existência de rochas calcárias, que asseguram a conservação de ossos antigos; e a prática de enterrar os mortos em grutas protegidas dos danos da natureza.

“Ela é a única região nas Américas com grande concentração de esqueletos na faixa dos 10 mil anos de idade”, enfatizou Walter Neves. “Não dá pra estudar a biologia dos primeiros seres americanos sem passar por Lagoa Santa”.

Povo de Luzia: escavações em Lagoa Santa

Tudo começou quando um achado na região de Lagoa Santa intrigou os especialistas: a descoberta do esqueleto humano mais antigo do nosso continente, em 1974, pela arqueóloga francesa Annette Laming-Emperaire.

Apesar do esqueleto, uma grande questão ainda não havia sido respondida.

É que o naturalista dinamarquês Peter Lund (1801-1880), considerado o pai da arqueologia brasileira, explorou centenas de grutas e abrigos entre 1835 e 1844. Ao todo, ele encontrou mais de 12 mil fósseis de animais que caracterizavam uma “megafauna”: preguiças-gigante, tigre-dente-de-sabre, tatus enormes e até cachorro das cavernas teriam passado por aquela região.

Então, a questão era: como os antigos povos viviam com essa megafauna?

Os americanos que, na época, também visitaram a Lagoa Santa para uma missão, bateram o pé: o homem não teria convivido com esses animais gigantes naquela região, já que nenhum osso de megamamífero foi encontrado em escavações feitas nos anos 1960 por eles mesmos. Porém, eles descobriram vestígios de ocupação humana de 10 mil anos atrás, a partir da então recente técnica de datação de carbono-14.

A missão franco-brasileira liderada por Annette, entretanto, contrariou os americanos. As escavações de sua equipe registraram vestígios “inequívocos” de convivência entre o homem e a megafauna: ossos de uma preguiça gigante foram localizados em depósitos de 11 metros de profundidade. E eles tinham idade de 9.500 anos, ou seja, eram contemporâneos dos antigos imigrantes americanos.

Reconstituição facial de 'Luzia'

Na década seguinte, o biólogo Walter Neves (foto acima) retomou os estudos estratigráficos (análise de fósseis) e, em 1999, apresentou o outrora ‘esqueleto antigo’ como Luzia, em artigo científico para a revista científica “Homo”. (Neves disse ter sido o ‘culpado’ por este nome. “Era uma forma carinhosa de se referir a este esqueleto”, revelou ao programa “Provocações”, da TV Cultura.)

Com datação de cerca de 11 mil anos, a reconstituição facial de Luzia (foto acima) impressionou o mundo: o nariz largo, os lábios grossos e o neurocrânio comprido revelaram uma fisionomia parecida com povos africanos e australianos (paleoamericanos), diferente dos ameríndios, tidos até então como os únicos ancestrais de todas as Américas. Projetou-se a imagem de uma mulher negra. Fato é que não é possível ter certeza sobre sua raça, porte ou hábitos.

Pouco tempo depois da imagem de Luzia estampar os principais jornais e revistas do país (foto abaixo), Neves iniciou o projeto “Origens e Microevolução do Homem na América”, com o objetivo de testar as hipóteses de Lund e Annette.

Para isso, teriam que encontrar mais provas de que o homem conviveu com a megafauna, que o ‘povo de Luzia’ não dependia da caça para sobreviver, que eles usaram abrigos das cavernas como cemitérios e entender a prática dos sepultamentos, que era bem sofisticada.

Projeto Origens: descobertas e frustrações

Entre 2000 e 2009, os pesquisadores do “Origens” provaram que Lund estava certo: sim, o homem conviveu com os grandes animais. “Com a obtenção de datas ao redor de 9 mil anos para uma preguiça gigante e para um tigre dentes-de-sabre, ficou claro que de fato o homem e a megafauna conviveram na região por pelo menos dois milênios”, escreveu Neves no ensaio “Lagoa Santa: Em Busca dos Primeiros Americanos”.

Sabemos, portanto, de duas morfologias que apontam povos de características distintas (ameríndios e paleoamericanos). Sabemos da convivência com a megafauna. E sabemos também das curiosas práticas funerárias: há indícios de decapitação de partes do corpo e cuidadosa manipulação do cadáver, sem os quais muitas dessas ossadas talvez não resistissem.

Esse é um detalhe que intrigou André Strauss, ex-aluno de Neves no projeto “Origens”. “Muitas vezes as pessoas veem essa prática como uma coisa macabra e não há nada disso. O macabro está no nosso olhar”, defende Strauss, citando povos antigos que habitaram a Europa ocidental e monges tibetanos, que costumam guardar ossos para preservar como talismã.

Constatações, porém, sempre escondem novos mistérios: “Se essa megafauna estava lá, por que eles não comeram dessa megafauna? Porque no sítio arqueológico, quando você analisa restos de alimentação, não tem nada de megafauna”, refletiu Neves. “Isso é muito estranho, porque esses animais estavam na paisagem, mas eles não tinham a megafauna como fonte de alimentação. É um mistério que não conseguimos resolver”.

Outra frustração do projeto “Origens”, confessa Neves, é não ter encontrado nenhuma evidência de ocupação em Lagoa Santa de mais de 11 mil anos. “Eu tinha certeza absoluta de que nós íamos conseguir estender essa ocupação de Lagoa Santa para 12, 13 mil anos, e isso não aconteceu. Exceto a Luzia, que é um ponto fora da curva, não há nada na região que indique uma atividade mais antiga”.

DNA de povos antigos

O projeto “Origens”, porém, ainda tem continuidade – embora não mais com esse nome. Do Instituto Max Planck, na Alemanha, o arqueólogo André Strauss coordena as escavações na região de Lagoa Santa, com uma equipe de mais de 30 especialistas de várias nacionalidades. Ele trabalha para identificar centenas de esqueletos por meio de uma técnica sofisticada, nunca antes realizada por brasileiros: a técnica de DNA antigo.

Strauss cuida de questões básicas, como ver onde os pesquisadores vão dormir, o custo de materiais de escavação e até mesmo de que jeito as pessoas tomarão banho. Além, claro, de conseguir financiamento.

O diretor do instituto alemão, Martin Stratmann, abraçou a ideia de Strauss quando ele disse que queria retomar o trabalho em Lagoa Santa como projeto de doutorado, para entender os costumes daqueles antigos povos. “Ele adorou a ideia e bancou. Foi um privilégio, porque normalmente um aluno de doutorado não consegue esse tipo de recurso”, recordou o brasileiro.

Enquanto Strauss trabalha com a extração de DNA antigo dos esqueletos na Alemanha, aqui no Brasil ele conta com o apoio de Rodrigo Oliveira, com quem divide a coordenação das escavações. “Não foi feito nenhum, absolutamente nenhum trabalho de DNA antigo no Brasil, porque ele é muito caro e a tecnologia dele pertence a alguns grandes centros internacionais”, contou Strauss.

Pode parecer simples, mas o trabalho de DNA antigo requer cuidados cirúrgicos. É que fósseis antigos, com o passar dos anos, perdem informações valiosas de DNA, principalmente com a manipulação do homem, algo que pode confundir a análise.

Por isso, já desde a extração, Strauss tem à disposição ferramentas específicas para catalogar, digitalizar e fazer todo tipo de diagnóstico possível com as amostras. “É um processo longo mesmo, não tem jeito”. Ele prevê que em um ano os primeiros resultados devem sair.

“Adoraria ter uma máquina do tempo e ver o que estava acontecendo, mas a gente não consegue”, brinca o brasileiro. “A boa notícia é que o DNA vai em direção a uma resposta muito mais incisiva do que a que temos hoje”.

Origem dos primeiros americanos: linha do tempo

A questão da imigração dos primeiros povos para o nosso continente costuma gerar confusão, principalmente devido às fisionomias dos esqueletos, geralmente associadas a uma nacionalidade.

Apesar das feições africanas e australianas dos paleoamericanos, não significa que os povos antigos da América tenham vindo da Austrália e África. Na verdade, eles repartem o mesmo ancestral, do Sudeste asiático.

Seja como for, os primeiros povos americanos inevitavelmente vêm do Norte. “Eu acredito que os paleoamericanos tenham vindo lá de cima por volta de 14 mil anos atrás. E os ameríndios, há 10 mil anos”, arriscou Neves.

Assim, pode-se traçar uma breve linha do tempo: esse povo teria saído da África há 70 mil anos, prosseguiu ao sudeste asiático por volta de 50 mil anos e imigrou para a Austrália, há 45 mil anos.

“Essa mesma população expandiu pro Norte, chegou na Sibéria e entrou na América”, sugere Neves. Não teria como atravessar da Austrália para a América por duas razões: não havia tecnologia de embarcação, nem população nas ilhas mais afastadas da Oceania, como a Polinésia, mais antigas que há 3 mil anos.

Arqueologia e novas descobertas humanas

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