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Madrastas dos contos reais

Publicado 30 Jun 2016 – 08:15 PM EDT | Atualizado 20 Mar 2018 – 12:57 PM EDT
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Os tempos modernos trazem como realidade as novas configurações na estrutura familiar, marcadas pela existência, no mínimo, de um segundo casamento. Com isso, surge com maior freqüência uma relação já muito famosa nos contos de fadas: a da madrasta e seu enteado.

Em todo conto de fadas existe uma linda e boa princesinha que sofre nas mãos de uma madrasta malvada. É verdade que as histórias infantis contêm elementos de realidade, talvez por isso interessem tanto as crianças que encontram nelas algumas das fantasias que as ameaçam. No entanto, seria interessante pensar o que realmente está em jogo nesta relação da madrasta com seu enteado, na vida real.

Tranqüila para alguns, para outros, porém, nem sempre é fácil o início desta relação, do ponto de vista de ambas as partes. Não se pode pensar que os encontros entre madrastas e enteados sempre se darão da mesma forma, pois dependerá do significado que cada um tem na vida do outro. Portanto, vale ressaltar que, um pouco diferente dos contos de fadas, a dificuldade de aceitar e construir esta relação também pode ser da criança.

Por este motivo, os adultos envolvidos no processo, pai, mãe, madrasta precisam entender que os encontros são marcados por afetos e muitos sentimentos podem emergir. É comum tanto a criança como a nova esposa do pai sentirem-se ameaçadas, com medo, deixando que muitas vezes esses sentimentos apareçam como agressividade, descaso, isolamento, renúncia e até mesmo negação da existência do outro.

É importante pensar que a relação madrasta/enteado é intermediada por um terceiro, e só acontece, na verdade, porque ele existe. Não houve escolha de nenhuma das partes de se encontrarem e passarem a conviver. A convivência se dá por conta da relação de amor que têm com uma pessoa em comum.

Tanto o enteado como a madrasta ocupam um lugar onde a existência do outro pode trazer significações nem sempre satisfatórias.

Para a madrasta, a criança é sempre um lembrete vivo e constante da existência de sua mãe (ex-mulher do seu marido), o que pode gerar sentimento de raiva sobre este filho, que não é seu. Na medida em que a mulher se vê cuidando de uma criança que nasceu de outra que supostamente é sua rival, mesmo que já tenha morrido, pode facilmente sentir-se forçada por sua própria imaginação a ocupar a posição de bruxa em vez da de fada. Contudo, é preciso pensar que esta criança é apenas um representante de alguém de quem não se quer lembrar.

Por outro lado, do ponto de vista da criança, pode ser a forma de resolver algo que a ameaça em suas fantasias: ser capaz de sentir raiva e amor por uma mesma pessoa, principalmente quando esta pessoa é sua mãe. Para criança pequena, é difícil entender e aceitar que a mistura destes sentimentos faz parte da natureza humana. Portanto, quando se tem uma mãe verdadeira e uma madrasta surge a possibilidade de aliviar-se desta tensão colocando uma no lugar da fada e a outra no lugar da bruxa.

Se tudo isso ocorre, ainda que a nível inconsciente, pode gerar uma distorção nesta relação e impossibilitar o crescimento natural de sentimentos que permitam a construção de vínculos afetivos entre estes dois personagens desta história.

Há uma tendência em esperar ou até mesmo exigir que o sentimento de amor permeie a relação madrasta/enteado. Vale ressaltar, porém, que o amor é um sentimento que cresce naturalmente com o tempo e pode ou não chegar. Contudo, deve ficar claro que a ausência dele não representa o fracasso da convivência, muito menos destrói a possibilidade da construção uma relação movida pelo afeto. É necessário, sim, abrir espaço para elaborar e ressignificar estes sentimentos que habitam a fantasia de cada um. E assim construir um caminho, onde o respeito, o carinho e o cuidado são fundamentais. Desta forma, é possível reescrever um conto, não de fadas, mas de seres humanos capazes de conviver em harmonia.

Márcia Mattos é psicopedagoga e pedagoga do Apprendere Espaço Psicopedagógico.

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